quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Sobre a morte, o condor passa...

"Alianza Lima: dificilmente outro nome, na história do futebol, está tão marcado pela desgraça. Há dias em que Lima volta a ser ‘La Ciudad de Los Reyes’. Dias em que os reis são outros e não mais os conquistadores do tempo do odiado Pizarro mas sim uma mole de milhares de homens de piel negra, cholos e mestizos que gritam: «Arriba Alianza!».

‘Lima la Fea’, chamam-lhe. Já ouvi o seu cantar solidário: «Se va, se va, Alianza Lima corazón!». Eles dizem que o Alianza é o clube da gente decente que sofre profundamente os custos das desigualdades sociais e que continua a lutar pelos seus direitos.
Em poucos lugares do mundo, o futebol entra assim pelos campos da política. As camisetas blanquiazules do Alianza continuam a ser da mesma cor da camisa às riscas do tratador de cavalos que fundou o clube em 1901. Mas há uma altura que passam a branco e negro: durante o mês de Outubro, em homenagem ao Cristo de Pachacamilla, o Santo Negro.
Lembro-me de Lima. Da esplanada que ficava por debaixo das arcadas da Plaza san Martín, à beira do exclusivo Club Nacional. A gente observava, gostosamente, nos intervalos de uns golos de pisco sour ou de Cusqueña, aquela mistura rácica que é marca da cidade: negros, brancos, japoneses, mulatos, zambos (que é como são conhecidos os cruzados entre índios e negros), mestiços. Aos domingos, quando o Alianza jogava no Alejandro Villanueva, na Calle Isabel La Catolica, o entusiasmo entornava-se pela praça bem cedo de manhã. Era o dia em que as pessoas dos cerros, os deserdados da sorte de El Agustino, La Vitoria, Callao e_Chorillos, os desempregados transformados em vendedores de quinquilharias falsamente incas que encantam os turistas incautos, sorriam de alegria e se sentiam mais donos da cidade do que os ricaços de Miraflores e San Isidro que têm carros enormes, americanos, e vivendas gradeadas à prova de assalto.
O povo trata o Alianza por ‘Intimo’. O seu futebol precisa de entusiasmo e de golos. É isso que exige a sua hinchada humilde que está farta das ordens e das regras do dia a dia e não suporta por muito tempo treinadores defensivos ou excessivamente tácticos.
É preciso que a equipa, os seus jogadores, seja tão espontânea como os adeptos. Há imagens indeléveis de ídolos de outras eras: Alejandro Villanueva, Adelfo Magallanes, Jose Maria Lavalle, Teofilo Cubillas, aquele que jogou no FC Porto, Hugo Sotil, Julio Bayon, Cesar Cueto ou Jose Velasquez. Nomes que ainda fazem enrouquecer gargantas, estremecer memórias, sonhar com um futuro límpido como os olhos de Elizabeth Taylor.
O futebol tem de ser alegre para que os hinchas esqueçam as agruras da existência, os arranques da fome. O_Alianza tem uma obrigação para com as suas gentes. É o centro dos domingos. Mudando ou não de cor, nos trinta e um dias de Outubro, os dias do_Santo_Negro, ‘Señor de Los Milagros de Las Nazarenas’ cuja imagem foi pintada no altar-mor do Santuário de Las Nazarenas por um escravo originário de Angola no Século XVII. Um escravo negro que se recusava a orar a um Deus branco. 
1987 é um ano inesquecível para o povo de Lima, para os hinchas do ‘Intimo’.
Havia um céu escuro sobre a cidade, no dia 9 de Dezembro.
Nuvens pesadas de chuva e de presságios.
Os presságios de Mama Ocllo, Filha do Sol, mulher amantíssima do inca Manco Capac, fundador do império.
Inti: o Deus do Sol. Irmão de Pacha Kamac.
Viracocha: o esplendor original, mestre do mundo.
No Peru a vida desliza ao sabor das seivas e destes nomes milenares. E do sol. Mas era noite lá no alto, para lá das nuvens que cobriam ‘Lima La Fea’.
O piloto do_Fokker AE-560 que transportava uma feliz equipa do_Alianza, que acabara de vencer em Pucallpa e estava mais perto do que nunca do título de campeã, avisava a torre de controlo do aeroporto Jorge Chavez que iniciara a manobra de aproximação à pista.
Era meia-noite.
O aparelho bordejava o bairro costeiro de Ventanilla e a cidade dormia.
Faltavam apenas dez minutos para uma aterragem que nunca chegou a acontecer. 
O avião despenhou-se no mar e, com ele, desapareceram Ganosa, Gino Peña, Tomas Farfan, Sussoni, Reyes, Garreton, Tejada, Tomassini e toda uma geração destinada às máximas honrarias.
Em Outubro, o Alianza troca as riscas azuis pelas riscas pretas do Cristo de Pachacamilla.
Em Dezembro, o Alianza troca as riscas azuis pelas riscas brancas do luto que ficou para todo o sempre.
Como dizia Daniel Alomia Robles, ao longe, sobre os Andes, às vezes o condor passa. Também passa sobre a morte..."

1 comentário:

  1. Um verdadeiro privilégio a leitura deste texto.

    O meu agradecimento Afonso. És grande.

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