domingo, 22 de outubro de 2017

“A minha mulher ainda é minha prima em 3º ou 4º grau, mas felizmente os filhos não saíram malucos”

"- Ao contrário do habitual não vamos começar esta entrevista por si directamente, mas pelo seu avô Carlos Alves e pelas famosas luvas pretas.
- O meu avô foi um grande internacional português da década de 30. Esteve nos Jogos Olímpicos de Amesterdão, onde Portugal fez o primeiro grande resultado desportivo da sua história. Na altura, só havia Jogos Olímpicos, não havia campeonatos da Europa, nem do Mundo. Foi considerado o melhor defesa do mundo nessas olimpíadas.

- E as luvas pretas começam com ele.
- É verdade. O meu avô era do Carcavelinhos que na altura foi campeão nacional e ganhou até um título numa final, frente ao Benfica. O Carcavelinhos era uma das grandes equipas da época. Chamava-se Campeonato de Portugal e não Campeonato Nacional como agora.

- É nessa mítica final que o seu avô passa a jogar com as luvas pretas?
- É. Antes do Benfica-Carcavelinhos, os jogadores estavam a almoçar e uma fã do meu avô, uma miúda com 13/14 anos, chegou ao pé dele, ofereceu-lhe as luvas dela e disse-lhe que se jogasse com as luvas o Carcavelinhos ia ganhar o jogo. Eram umas luvas pretas, que ainda as tenho guardadas religiosamente em minha casa. O meu avô achou piada aquilo, mas guardou as luvas no bolso do casaco e foi para o jogo. Entretanto o Carcavelinhos chegou ao intervalo a perder e os colegas que tinham assistido à cena na mesa, “obrigaram-no” a jogar com as luvas na segunda parte. Sei que o Carcavelinhos deu a volta ao jogo e foram campeões de Portugal. Tenho essa medalha. É de 1927/28 ou de 1929/30 se não estou em erro.

- A partir dali ele usou sempre as luvas, qualquer que fosse o jogo?
- Sempre. A partir dali tornou-se célebre com aquelas luvas pretas. Eu fui fazendo a minha vida, sem ter ainda bem a noção do que é que aquilo representava. O avô Carlos Alves na disputa de uma bola com Vitor Silva, do Benfica, no célebre jogo em que começou a usar as luvas pretas e que o Carcavelinhos venceu por 2-1, sagrando-se campeão nacional

- Foi ele quem o incentivou a jogar futebol?
- Sim. Eu nasci em Albergaria-a-Velha, sou o mais velho de três irmãos. É uma família que veio do futebol. O meu avô era o treinador da equipa local de Albergaria. O meu pai também jogou futebol, embora sem grande sucesso. Andou sempre atrás do meu avô, enquanto solteiro, até organizar a sua vida. As origens da minha família da parte do meu pai são de Lisboa, a minha mãe é que é de Albergaria, foi lá que o meu pai conheceu a minha mãe.

- O que faziam os seus pais profissionalmente?
- O meu pai era torneiro mecânico. A minha mãe era doméstica. Os meus irmãos nasceram em São João da Madeira. O meu pai foi trabalhar para a Oliva, que era uma grande fábrica de São João da Madeira. E eu fiquei com os meus avós em Albergaria, porque o meu avô era o treinador do Albergaria, que chegou a andar na II divisão.

- Foi criado pelos seus avós?
- Sim. O meu avô teve uma premonição de que eu poderia vir a ser o seu sucessor, coisa que nem o meu pai, nem o meu tio conseguiram. Ele gostava muito de ter um seguidor. Fui criado pelos meus avós desde os três/quatro anos de idade. Eu nasci praticamente dentro de um campo de futebol, porque era lá a casa do treinador, oferecida pelo clube. Era um recinto muito grande com campo de futebol de 11, com campo de basquetebol, com espaços enormes, com árvores. Era um parque desportivo fabuloso que pertencia à fábrica Alba, porque o clube era da fábrica. Foi ali que eu comecei. Mal acordava, ia para a rua jogar futebol. Era bola, bola, bola, com o meu avô sempre a puxar por mim. Até que depois fui estudar para Oliveira de Azeméis.

- Depois foi para São João da Madeira.
- Sim, porque entretanto o meu avô adoeceu e mudamo-nos para São João da Madeira onde já estavam os meus pais. Foi operado e foi lá que acabou por morrer, em São João da Madeira. Quando nos mudámos, ele inscreveu-me no Sanjoanense. Começo a jogar com 14 anos de idade. Na altura não havia escolas de futebol, oficialmente começava-se a jogar nos iniciados aos 14/ 15 anos. Foi esse o meu primeiro clube, antes de ir para o Benfica.

- Depois de um ano no Sanjoanense vai para o Benfica como juvenil, na época 1969/70. Como é que lá vai parar?
- O Benfica tinha olheiros e havia um senhor em Albergaria-a- Velha que já me tinha visto. Entretanto, apareceu o FC Porto, interessado em mim, e levaram-me para ir treinar ao estádio das Antas. Fui convidado para ir com o meu pai, treinei e agradei. Falaram com o meu pai sobre todas as condições para jogar no FC Porto. Só que esse tal olheiro do Benfica era amigo do Fernando Cabrita, antigo treinador do Benfica, e ao saberem do interesse do FC Porto falaram com os meus pais, meteram-me no comboio e enviaram-me para Lisboa.
- Era o que sonhava, jogar no Benfica?
Era.

- De onde vem essa paixão pelo Benfica?
- Eu acho que tem um pouco a ver com as referências da altura, como o Eusébio; e o facto do Benfica ser bicampeão Europeu.

- O seu avô e o seu pai também eram benfiquistas?
- O meu pai era. O meu avô era do Carcavelinhos.

- Quando foi para Lisboa ficou a viver onde e com quem?
- Fui viver para o Lar do Jogador, na Calçada do Tojal, com 15 anos, com a malinha de cartão como eu costumo dizer.

- Sozinho e sem família por perto. Não lhe custou?
- Custou, claro que custou. Mas a adaptação no Lar foi fácil porque tinha muitos jovens jogadores. Estavam lá o Humberto e o Toni que já eram séniores na altura, e são mais velhos do que eu. Estavam ciclistas, hoquistas, o Jorge Vicente, por exemplo.

- Nesses tempos faziam muitas coboiadas?
- Não, aquilo era fechado. A partir das 10 ou 11 da noite já não se podia sair. Havia um casal a viver lá que eram os dirigentes ou directores do lar. Por isso aquilo era tudo dentro de uma disciplina, não vou dizer que militar, mas uma disciplina como deve ser.

- Estudou até que ano?
- 4º ano. Estamos a falar do 4º ano que não tem nada a ver com agora. Se eu quisesse poderia seguir engenharia a partir dali. Era um pouco como o 12º ano hoje em dia. Mas não cheguei a fazer o 5º ano. Depois, mais tarde, consegui a equivalência, uma questão de pormenor só, não que me tenha ajudado alguma coisa porque a minha vida teve sempre a ver com o futebol.

- Quando chega a sénior, não ficou no Benfica, foi emprestado ao Varzim. Porquê?
- Eu era uma das grandes promessas, fui internacional, titularíssimo da selecção. Fui vice-campeão da Europa na selecção de juniores. Perdemos a final com a Inglaterra. Num dos jogos de preparação, partiram-me o menisco e eu fiquei com a parte final da época arruinada. E ser operado ao menisco naquela altura era diferente de hoje. Não era uma artroscopia; antigamente abriam, cortavam...

- Tinha quantos anos na altura?
- 18 anos. É uma idade muito complicada, quando se sobe a sénior. E o Benfica logicamente apostava muito em mim. Na altura, fazia-se o torneio internacional do Benfica, que era quase um campeonato da Europa, porque vinham as melhores equipas; dava na televisão, era uma coisa fantástica e eu fui o melhor jogador do torneio. Assinei e fiz o meu primeiro contrato como profissional nessa altura.

- Já era casado?
- Não, mas casei-me pouco depois. Comecei a namorar a minha mulher nesse famoso torneio do Benfica. Ela foi com a mãe dela assistir à final do torneio Benfica-FC Porto. É que, numa altura em que o meu avô jogou no Académica do Porto, o meu pai ficou a viver em casa dos pais da minha sogra (risos). É uma história familiar gira.

- Então o seu pai viveu em casa...
- [interrompe] Em casa dos pais dos meus sogros. A minha mulher ainda é minha prima em 3º ou 4º grau, há ali uma ligação familiar, mas felizmente os filhos não saíram malucos (risos). Casei-me com 19 anos e ela com 17. Na altura em que subi a sénior.

- João Alves durante a entrevista Ainda fez parte da equipa do Eusébio.
- E do Coluna, do Zé Augusto, do Torres, aqueles craques todos, dos bicampeões europeus. Mas iniciei a época lesionado. Comecei depois a jogar nas reservas, e a meio do ano tive a mesma lesão no outro menisco. Primeiro, foi o menisco interno e, depois, foi o menisco externo. Digamos que o meu primeiro ano de sénior foi um ano de lesões. A partir daí o Benfica resolveu emprestar-me, uma vez que eu tinha vindo de duas lesões e operações. Emprestaram-me então ao Varzim. Fui para a 2ª divisão.

- Como é que foi essa época no Varzim?
- Foi excelente. Casei nessa altura precisamente.

- A sua mulher foi consigo?
- Casámo-nos em Outubro – fizemos há pouco tempo 45 anos de casados – e fomos para uma casa em Caxinas, o bairro dos pescadores na Póvoa do Varzim. Foi aí que fizemos o primeiro ano de casados.

- Quando é que nasce o seu primeiro filho?
- Casámos em 1972 e o Carlos nasceu em 1974, já estava no Boavista. E ainda vim para o Montijo. 

- Estava a dizer que essa época no Varzim foi muito boa.
- Sim, comecei a dar nas vistas e regressei ao Benfica. Termina a minha época de empréstimo, fomos a uma finalíssima entre o Montijo e o Varzim disputar a equipa que faltava apurar para ir para a I divisão nacional. Fomos a uma finalíssima em Leiria, um campo neutro, perdemos 1 a 0 e na época seguinte apareceu o Vitória de Setúbal, pela mão do Pedroto.

- Mas entre o Varzim e o Setúbal, regressa ao Benfica?
- Regresso ao Benfica por uma questão de legalidade, mas não para jogar. Não chego a jogar, sou emprestado outra vez.
- Antes de avançarmos mais na linha do tempo, conte lá o que se passou com o António Simões num jogo com o Freamunde.
- (risos) Isso já está mais que ultrapassado. Foi no meu primeiro ano de sénior, no tal ano em que não joguei. Houve uma festa de homenagem ao Santana, um antigo jogador do Benfica e eu fui convocado. Era um misto da primeira equipa e das reservas. Sempre tive um temperamento muito especial, não era muito fácil domarem-me.

- Explodia facilmente.
- Sim. E o Simões perguntou-me porque é que eu estava a jogar de luvas – eu tinha começado a usar luvas nos juniores, quando o meu avô morreu.

- Começou a usar as luvas dois dias depois do seu avô ter falecido não foi?
- Foi. Eu tinha ido visitá-lo. Tinham-me dito que o meu avô estava a morrer, fui a São João da Madeira. Ele pediu-me muitas vezes para eu jogar com as luvas, mas eu nunca tinha tido coragem. Nessa última vez ele fez-me o último pedido. Eu não tinha bem a noção de que ele ia morrer e passados dois ou três dias, faleceu. A partir daí achei por bem cumprir a promessa que lhe fiz e que nunca tinha tido coragem na vida de fazer: jogar com as luvas.

- Porque nunca o fez antes?
- Porque era algo de diferente de todos os outros jogadores. E embora possa servir para distinguir, sendo-se um bom jogador, mesmo assim há a parte positiva e a negativa. Há sempre gente que pode levar e leva para a parte negativa, que é uma maneira de querer uma distinção em relação aos outros... sei lá tanta coisa que me passou pela cabeça. É evidente que depois ultrapassei isso. E o Simões teve a triste ideia de me questionar sobre isso, quando eu já jogava desde o ano anterior com as luvas. E logicamente aquilo não me agradou muito e foi um bocado chato.

- Chegaram a vias de facto?
- Não, não chegámos a vias de facto, mas a minha vontade foi essa. O Simões era alguém que tinha peso no Benfica, já era ou veio a tornar-se o capitão da equipa – e não quero estar aqui a criar qualquer tipo de coincidência, até porque eu tive essas lesões – mas a verdade é que fui despachado completamente do Benfica. Volto a repetir, fiz uma época fabulosa no Varzim, fui internacional de juniores e, quando regressei ao Benfica, fui despachado outra vez. Fui para o Montijo emprestado. João Alves troca de galhardete com o italiano Dino Zoff, no único jogo em que foi capitão da selecção nacional.
- Vai a título definitivo por 600 contos?
- Isso foi depois; primeiro, fui emprestado. Entretanto o que é que acontece: o Vitória de Setúbal, pela mão do Pedroto tenta contratar-me. O Benfica não me vende porque na altura o Vitória de Setúbal era um clube que estava, como o Boavista mais tarde, a discutir o título. Uma equipa que passou pela Europa, uma grande, grande equipa. Não me negociaram para o Vitória de Setúbal e deixaram-me ir para o Montijo. No Montijo fui para a tropa.

- Fez a tropa?
- Fiz a tropa e entretanto, a meio da época, fui mobilizado para ir para a Guiné. O meu filho estava para nascer ou tinha meses, já não me recordo bem, e quando aparece essa situação fiquei um bocado aflito. Entretanto consegui arranjar um rapaz para ir no meu lugar por 90 contos. Fui mobilizado, eu e o Jordão. Eu não tinha esse dinheiro, o Benfica também não se quis chegar à frente porque eu era atleta do Benfica, mas estava emprestado. Até que o Montijo avançou para a compra do meu passe por 600 contos, o que na altura era bastante dinheiro. Nem percebo como é que arranjaram o dinheiro, mas pagaram os 90 contos ao rapaz que foi no meu lugar. Felizmente, passados três meses tudo acabou. Deu-se o 25 de Abril e o rapaz regressou são e salvo.

- Entretanto fica no Montijo nessa época, na I divisão. Depois o Montijo desce e o João segue para o Boavista, com o Pedroto.
- Exactamente. O José Maria Pedroto teve problemas com o Vitória de Setúbal e sai a meio da época; pega no Boavista no ano seguinte e começa a construir uma equipa de sonho. Na minha opinião, era a melhor equipa que havia na altura em Portugal e que discute o título. Estive lá dois anos com ele, ganhámos duas Taças de Portugal e no segundo ano discutimos o título e ficámos a dois pontos do Benfica. No Boavista, sou eleito pela primeira vez o melhor jogador do ano em Portugal.

- Depois é convocado para a selecção.
- Entretanto o Pedroto passa a ser o seleccionador. Fui convocado para a selecção de esperanças para um treino, foi a minha primeira convocatória. O treino era um jogo entre a selecção de esperanças e a selecção A. A meio do treino, o Pedroto tirou-me o colete dos mais novos e meteu-me na selecção A. A partir daí, fui por aí fora. Logicamente fiquei muito ligado ao José Maria Pedroto, foi o meu grande mestre e o pai do futebol como nós o chamamos. Carlos Manuel puxa a camisola de João Alves, durante um encontro entre o Benfica e o Barreirense.
- O que é que Pedroto tinha de especial?
- Tinha um feeling, uma sensibilidade, um conhecimento, tudo aquilo que um treinador – um grande treinador – tem que ter.

- Como é que se dá a aproximação do Salamanca?
- É muito simples. Nós fomos a um torneio de início de época em Granada, e eu fui eleito o melhor jogador do torneio. Passados 15 dias estava transferido. Foi tão simples como isso.

- Tinha empresário?
- Nunca tive.

- Não teve receio de ir para um país diferente?
- Tive. Tinha 23 anos, a minha mulher 21 anos, e lá fomos os dois com o nosso filho mais velho. Em termos económicos apresentaram-me uma proposta fabulosa: 200 contos por mês. Em Portugal um jogador muito bem pago ganhava 25/30 contos/mês. Era 10 vezes mais. Só que era uma equipa do meio da tabela de Espanha.

- Mas como foi a negociação?
- Fui com o Valentim Loureiro e o Pinto Sousa que eram os grandes dirigentes do Boavista na altura. Lembro-me perfeitamente: fomos todos de carro, em dois carros, durante a noite. Eu e a minha mulher ficámos no Grand Hotel de Salamanca, enquanto os dirigentes estiveram a negociar o meu contrato. De manhã, quando acordei, foram chamar-me para ir assinar o contrato, que as coisas estavam resolvidas. Foram eles os meus empresários, o major, o Pinto Sousa, os dirigentes do Boavista, porque também defenderam os meus interesses. Eu tinha a ideia do que é que queria, embora se tivesse ido com um empresário se calhar até podia ganhar mais.

- Quando chegou ambientou-se logo?
- Quando chegámos fomos viver para o Grande Hotel – eu, a mulher e o nosso filho Carlos. Passados dois dias pegámos no carro e viemos embora. Comecei a sentir aquele vazio do português, do sentimental, a lembrar-me do meu país. Cheguei a Lisboa e fomos ter com um dirigente do Boavista para lhe dizer que eles resolvessem o problema com Espanha, que eu queria voltar. Claro que me viraram a cabeça e levaram-me outra vez de volta para Salamanca. Depois, lá nos habituámos.

- Então foi difícil a adaptação.
- Foi, no princípio. Depois arranjaram-nos um apartamento para estarmos mais à vontade. Ainda bem, porque as dificuldades iniciais foram ultrapassadas, e bem ultrapassadas, e tanto foram que eu depois fui o melhor jogador do ano em Espanha. As grandes estrelas do futebol mundial estavam em Espanha, não havia estrangeiros em Inglaterra nem Alemanha; a Itália estava fechada. Portanto os melhores jogadores estavam todos centralizados ali.

- Lá também jogava com as luvas pretas?
- Claro, sempre. Em todos os jogos. Respeitaram sempre.

- Ficou quanto tempo?
- Duas épocas.

- A sua mulher nunca teve uma profissão, esteve sempre consigo?
- Sim e foi sempre companheira. Com Johan Cruyff num jogo amigável entre o PSG e o New York Cosmos, em que apenas deu o pontapé de partida, uma vez que ainda recuperava da lesão na perna.
- Desses tempos em Salamanca tem alguma história insólita?
- Há muitas histórias. Tenho uma em que nós fomos jogar a Madrid e ganhámos 1-0 ao Real Madrid, com um golo meu. Depois do jogo, um grupo daqueles mais mal comportados, resolveu ir festejar. A minha mulher estava em Salamanca, que até Madrid são mais de 200km. Liguei à minha mulher a dizer que a equipa toda ia ficar em Madrid a festejar aquela vitória do Salamanca, que era um dia especial. Foi uma grande “peta” mesmo. Que íamos ficar a dormir no hotel, a equipa toda, e que só regressávamos a Salamanca no dia seguinte.

- Foi apanhado?
- (risos) Chegamos a casa no outro dia por volta do meio dia. E à 2ª feira tínhamos um grupo que costumava jantar e logicamente houve alguns que foram e outros que não foram festejar. As mulheres, ao falarem umas com as outras, sem querer, descobriram que não houve ninguém que tivesse ficado em Madrid, mas que alguns foram bons pais e bons maridos e vieram para Madrid e outros não. Foi uma grande bronca nesse jantar, levantou-se ali uma celeuma, mas que foi bem resolvida.

- A sua mulher não ficou zangada consigo?
- Ficou. Ela ainda hoje utiliza muitas vezes esta história. É a primeira vez que estou a contar (risos) 

- Depois de Salamanca regressa ao Benfica, mas é assediado pelo Real de Madrid. Não vai porquê? 
- Fui assediado por Real Madrid, Barcelona, Valencia. Havia três possibilidades em cima da mesa e com o Real Madrid as coisas ficaram acertadas.

- E então?
- E então eu, maluco, como nunca tinha sido campeão no Benfica e tinha sido, passo a expressão, “corrido” do Benfica...

- Meteu na cabeça que tinha de voltar ao Benfica.
- Quero salientar que eu tinha sido o jogador do ano em Espanha, com os Cruijff, os melhores jogadores do mundo a jogar lá, e por isso mesmo é que apareceu o Real Madrid e todos os outros. Mas apareceu também o Benfica, e emboras as coisas entre os clubes espanhóis estivessem acordadas, deram-me a volta para regressar ao Benfica. Depois aquele sentimento de amor próprio de ter sido, não quero dizer enxotado, mas, digamos, de o Benfica não me ter dado o devido reconhecimento, e o eu poder entrar pela porta grande... isso mexeu muito comigo, com o meu orgulho.

- Ofereceram-lhe um bom ordenado?
- Sim, isso também pesou. O Benfica tinha sido há poucos anos bicampeão europeu. A minha mulher queria lá ficar, achava que eu não devia vir. Tive reuniões com o Benfica e conseguimos chegar a um acordo. A partir do momento em que garanti que vinha para o Benfica, entraram em contacto com o Salamanca e adquiriram o meu passe. Foi a maior transferência de sempre naquela época. Tanto assim é que, por ser um valor tão elevado, teve que ir à Assembleia da República. Primeiro não permitiam o meu regresso a Portugal, porque a verba que vinha ganhar era astronómica – estávamos num pós 25 de Abril, muito recente, muito fresco. Acho que não podiam sair divisas do país. Não sei como fizeram, se foi algum benfiquista da América ou de qualquer lado que se meteu ao barulho, a verdade é que o Benfica conseguiu comprar o meu passe ao Salamanca e na época seguinte estava cá.  
- Consegue finalmente ser campeão pelo Benfica?
- Não. Ficámos em 2º lugar e fui-me embora para o Paris Saint German exactamente por causa disso. Fiquei tão desiludido... 
- Emigrou novamente. O seus outros dois filhos já tinham nascido?
- Quando fui para França tinha só o Carlos ainda. A Núria nasceu em Lisboa, numa data bem marcante para mim e para o Benfica. Mas primeiro fui para o PSG.

- Gostou de Paris?
- Fiquei encantado. Eu e a minha mulher. Fui recebido como vedeta, os portugueses enchiam o Parque dos Príncipes. Faço um início de época fabuloso e à terceira jornada, em Sochaux, há um antigo internacional francês que me parte a perna: deixou-me a perna virada ao contrário. Fui operado duas vezes, ainda tenho uma placa com 12 parafusos no perónio. Essa época foi para esquecer, recomecei a jogar passados seis meses, ainda fiz o final da época no PSG.

- Mas o Benfica voltou a comprá-lo.
- Começo a ficar desgostoso em França, fiquei desiludido, porque até final da época nunca mais consegui voltar a ser o jogador que era antes. A recuperação acabou por ser de um ano e apareceu o Benfica outra vez, readquiriu-me por metade do preço, até porque tinha uma perna partida. Regresso a Portugal, finalmente para ser campeão. É quando nasce a minha filha, a Núria, na véspera do jogo em que o Benfica ganha ao FC Porto. Eu marco o golo da vitória e esse golo permite ao Benfica praticamente ser campeão nessa época. E depois fomos à Taça UEFA e fui outra vez campeão: ganhámos taças e supertaças, Foi uma época de ouro do Benfica.

- Que história é aquela de ter chegado atrasado ao treino e o Eriksson o ter mandado embora?
- Estive três épocas seguidas no Benfica, e na última é que há isso com o Erickson. Ganhámos tudo o que havia para ganhar e eu fui titularíssimo durante os jogos todos da época. Até que houve realmente um treino em que eu cheguei atrasado.

- Era hábito seu?
- Não, não era hábito. Não vou dizer que era um menino bem comportado, sempre fui um bocado enfant terrible, mas sempre sociável, amigo do meu amigo e bom companheiro. Cheguei atrasado e ele não gostou. Agora, coincidência ou não, e eu também sou treinador, se um jogador chegar todos os dias atrasado é uma coisa, mas se chega um dia atrasado ao treino, vou tirá-lo da equipa?! Ainda mais quando estamos já campeões, com os títulos que já tínhamos ganho, na final da Taça UEFA?

- O que fez ele?
- Põe-me como suplente nos jogos da final da Taça UEFA. Pôs-me completamente de lado a partir daí. Agora se tem a ver com a questão do treino… Em minha opinião foi um motivo arranjado porque havia um jogador chamado Stromberg, um sueco, que tinha vindo pela mão do Eriksson. Era um jovem e eu terminava o meu contrato com o Benfica, era o jogador mais bem pago no Benfica. No último jogo da época o Benfica foi jogar a Braga; são convocados todos os jogadores, porque já éramos campeões, e íamos também festejar o titulo a Braga, uma zona com muitos benfiquistas. O único jogador que ele deixou de fora, que não deu o prazer de festejar esse título, no norte, fui eu.

- Era só por causa do Stromberg ou havia uma embirração consigo?
- Não sei. Sinceramente. A nossa imaginação depois começa a trabalhar: terá sido por isto, por aquilo? O que ficou para a história foi que eu cheguei atrasado a um treino e que ele a partir dali cortou comigo. Eu tenho outra ideia. A minha ideia é que ele tinha um jogador que tinha vindo pela mão dele, que queria lançar. Essa para mim é a explicação, mas fez isso quando já tinha ganho tudo no Benfica, com excepção da Taça UEFA, que acabou por perdê-la.

- Acha que se tivesse jogado o Benfica teria ganho?
- Para lhe dizer com toda a sinceridade... Eu estando no meu melhor e na final... Os grandes jogadores são jogadores de finais. E é uma questão de lógica. Se eu ajudei a equipa a chegar até ali, a fazer aquilo tudo... É aquilo que mais custa, chegar a uma final europeia ou de selecções. E eu cheguei a essa final, mas só joguei meia hora; entrei quando estávamos a perder 3-1. Alguma coisa aconteceu de estranho. Tanto eu como o Filipovic não merecíamos ser tratados como fomos. Não sei se foi por já termos ultrapassado a casa dos 30 anos. Por coincidência, o Filipovic acabou por vir comigo para o Boavista, fui eu que o levei comigo.
- Fica duas épocas no Boavista até se tornar treinador.
- Exactamente. Estive um ano como jogador, depois no outro ano era para ser o treinador de campo da equipa, e o mister Mário Wilson o manager. Mas ele acabou por dar-me a volta e quis que eu continuasse a jogar. Estive a fazer a construção do plantel com ele, um pouco com esse sentido de vir a ser adjunto.

- Ainda em 1984/85?
- Sim, na última época do Boavista, em que me torno treinador. Fizemos uma primeira volta espectacular e na segunda volta a equipa começou a cair. Aconteceu ao Mário Wilson aquilo que acontece a muitos treinadores quando os resultados começam a não aparecer. E eu pego na equipa no último terço do campeonato, a pedido do Valentim Loureiro, após a saída do Mário Wilson. É aí que começo uma nova carreira. Estou mais dois anos no Boavista, tivemos bons resultados e saio na terceira época.

- Sai porquê?
- O Boavista na altura era um clube de Liga Europa, e esse ano não correu tão bem, estava no meio da tabela e decidimos rescindir o contrato.

- Segue-se Leixões, Estrela da Amadora, depois volta ao Boavista, V. Guimarães, novamente E. Amadora e depois Belenenses. Destas épocas todas, até ir para o Salamanca, recorda-se de algum episódio importante?
- Ganhámos a Taça de Portugal no Estrela da Amadora. É um feito histórico para um clube que infelizmente já acabou. É um daqueles troféus, daqueles títulos que é muito difícil um clube com a dimensão do Estrela, ou qualquer clube, ganhar.

- Quando fez o curso de treinador?
- Fiz o meu curso com 25 anos, altura em que era internacional.

- Desde cedo que sabia que ia ser treinador?
- Sim.

- Como é que vai treinar o Salamanca?
- Na altura em que jogava no Salamanca o nosso motorista era o Juan Maria Hidalgo, que é hoje o dono da companhia Hidalgo, a companhia de aviação Europa, a maior companhia privada de aviação espanhola, e dono das viagens Halcon, onde por acaso o meu filho trabalha. Ele começou com dois autocarros. E há sempre brincadeiras dos jogadores com os motoristas ou com os roupeiros da equipa; normalmente, é aquela malta com quem os jogadores mais se liga e mais desabafa. E nós criámos uma amizade enorme e ele entretanto tornou-se neste portento todo. Entretanto, o Salamanca passou a ser uma sociedade desportiva e ele tornou-se o presidente. Nessa altura, o clube desceu de divisão e ele veio buscar-me a Portugal, estava eu no Belenenses. Tivemos sempre uma relação familiar muito grande.
- Enquanto treinador a sua mulher também o acompanhava quando mudava de clube?
- Sempre.

- Gostava dessa vida de “saltimbanco”?
- Gostava. Em Espanha, adorei viver em Salamanca, uma cidade linda, linda, e muito especial. Adorámos viver em Paris, até comprámos lá um apartamento. Já o vendi.

- Quando é que nasce o terceiro filho?
- Não sou muito bom em datas: o Ivan tem 33 anos. Nasceu no Porto, na minha transição de jogador para treinador.

- O que é que eles fazem profissionalmente?
- O mais velho, disse há pouco, está numa sucursal da Halcon. Sim está a chefiar uma sucursal da Halcon, a miúda tirou um curso de educadora de infância em Alcabideche e vive em Carcavelos; e o mais novo é formado em marketing e é director de uma empresa bastante conhecida a nível de marketing. O mais novo está com 33 anos, a miúda 36 e o mais velho tem 43.

- Onde é que investiu o seu dinheiro ao longo destes anos todos?
- Tive vários negócios. Tive a marca de roupa desportiva Patrick com o major Valentim Loureiro, mas já acabou; vendemos. Depois, montei com a minha mulher uma empresa de produtos alimentares que trazíamos de Espanha, de Salamanca. Também deixámos. Mas o meu negócio principal sempre foi o futebol.

- Investiu em algum clube?
- Não. Tenho uma escola de futebol, mas isso não é um negócio, é um hóbi. Era uma escola de futebol que tornei numa associação.

- Quando é que a criou?
- Há 11 anos, em Santiago do Cacém. Neste momento é uma associação, que entra em competições oficias no distrito de Setúbal. Chama-se Associação Desportiva Luvas Pretas.

- Porquê em Santiago do Cacém?
- Porque nós temos casa em Santo André, na lagoa de Santo André, desde os 20 e tal anos que vamos para lá.

- Era a casa de férias?
- Era. Mas entretanto comprámos lá uma quinta e é onde eu moro, quase há 20 anos. Gosto muito daquela região.

- Um homem que nasce no norte e que se torna alentejano.
- Quase só me falta o capote (risos). Gosto muito. Tenho um cavalinho, tenho cães, tenho galinhas, patos…

- Gosta de montar a cavalo?
- Desde muito jovem.
- Vamos voltar à sua carreira de treinador. Esteve quatro épocas a treinar o Servette da Suíça. 
- Exactamente. E com grandes resultados.

- Conte.
- Foi excepcional, adorei viver em Genebra. Fui primeiro só com a minha mulher, mas depois acabei por levar os meus três filhos. O mais velho veio trabalhar comigo como adjunto, ele também é treinador de futebol. Pode vir a ser um grande treinador. Mas, por uma questão de segurança, está também a trabalhar na Halcon. Na minha opinião como pai, ou está a trabalhar no top num clube de futebol, onde se ganha dinheiro a sério, ou então é melhor ter o futebol como segunda profissão. O mais novo acabou por levar a família para lá; consegui arranjar emprego para ele. E a Núria também lá esteve só que não conseguiu adaptar-se, era difícil arranjar emprego na profissão dela porque tinha de dominar muito bem o francês.

- Para si, enquanto treinador, as coisas correram bem.
- Sim. Foi um grupo que eu, mais o meu filho e a malta que trabalhou comigo, fomos buscar quase a descer à terceira divisão e colocámos na Liga Europa, em dois anos.

- Foi o projecto como treinador que lhe deu mais gozo?
- Um dos que me deu mais gozo. O Estrela da Amadora, por exemplo, foi fabuloso. Fui campeão nacional da 2ª divisão no Estrela, subi o Estrela de divisão por duas vezes, ganhei uma Taça de Portugal. Também gostei de trabalhar no Belenenses, no Vitória de Guimarães, Boavista.

- No Benfica só esteve como treinador de juniores.
- Sim, estive lá dois anos.

- Tem pena de nunca ter treinado a equipa principal do Benfica?
- Tenho.

- Era esse o seu sonho enquanto treinador?
- Sim, o Benfica ou um clube daqueles…

-Essa oportunidade nunca surgiu porquê?
- Sinceramente não sei. Houve uma altura em que podia ter acontecido, quando estava a treinar os juniores do Benfica. Estava lá o Camacho, que saiu a meio da época. Nunca fui de pedir alguma coisa a alguém. As pessoas sabem onde é que estou, sabem onde é que eu moro.

- Acha que não aconteceu por falta de reconhecimento técnico ou pelo seu feitio, por ser temperamental?
- (risos) Tem que perguntar isso às pessoas em questão. Não deu, não deu. Agora o que posso dizer é que treinei clubes europeus, quando digo europeus, são todos os clubes que lutam para ir às provas europeias. O Vitória de Guimarães, o Boavista, o Belenenses. Estive no Servette, que é um dos grandes da Suíça. Cá, tive excelentes resultados como treinador, só uma ou outra vez é que as coisas não correram tão bem, mas tenho orgulho na carreira que fiz. Mas, em Portugal, quem é que é campeão nacional? Tem que se treinar o Sporting, o Benfica ou o FC Porto, senão não é possível. Só houve uma excepção, o Jaime Pacheco no Boavista.

- Do que é que tem mais pena, de não ter treinado a equipa principal do Benfica ou de não ter sido campeão nacional como treinador?
- Tenho mais pena de não ter sido campeão nacional como treinador da 1ª divisão. Eu tive possibilidade de treinar o FC Porto. Tive uma vez conversações com o presidente, com o Pinto da Costa, mas acabou por ir o Fernando Santos para lá.

- Não foi porquê?
- As coisas derivaram para o lado do Fernando Santos. Eu tinha acabado a época como treinador do Campomaiorense e ele estava no Estrela da Amadora. Estive para treinar a selecção, também estive para treinar o Benfica na altura do engenheiro Abílio Rodrigues, que era o vice-presidente. Houve sempre hipóteses, mas nunca se concretizou ou por isto ou por aquilo.

- Não foi por falta de vontade sua.
- Não, não foi. Eu estava a treinar o Campomaiorense, acabou essa época, e fui ver o torneio de Toulon, onde normalmente jogam os jovens portugueses, porque estava a preparar a época seguinte. Mas aproveitei e levei a minha mulher comigo para depois ficar lá na zona da Côte d’Azur, a passar uns dias de férias. Entretanto, o Pinto da Costa liga para minha casa, o meu filho mais velho atendeu; disse-lhe onde é que eu estava e deu-lhe o número do hotel. Quando chegamos ao hotel, estava lá a mensagem com o número do Pinto da Costa. No outro dia de manhã liguei e ele perguntou-me se eu estava interessado em treinar o FC Porto. Disse-lhe que sim, como é óbvio. Quem é que não está interessado em treinar o FC Porto?

- E depois?
- Depois foram aquelas conversas de circunstância, ele perguntou como é que estava a minha vida, disse-lhe que tinha mais um ano de contrato com o Campomaiorense, mas que tinha uma cláusula que me permitia sair e as coisas ficaram, digamos, mais ou menos acertadas. Ele perguntou quando é que eu regressava a Portugal, isto era uma quinta ou sexta-feira, e eu disse-lhe que ia ver a final do torneio de Toulon, fazia uns dias de ferias e tinha avião marcado para a quarta-feira seguinte. O FC Porto jogava a final da Taça de Portugal com o Beira Mar nesse domingo. E o que é que aconteceu? Aconteceu que quando cá cheguei, o FC Porto tinha contratado o Fernando Santos. Se calhar ele estava à espera que eu apanhasse o avião e que viesse a correr. Mas o que acordámos foi que, quando cá chegasse, eu telefonava para nos encontrarmos.

- Como soube do Fernando Santos?
- Quando vinha no avião para cá. Distribuíram jornais a bordo, peguei na “A Bola” e a notícia era “Fernando Santos praticamente certo no FC Porto. João Alves era o outro nome…” e não sei o quê. E foi assim. Quando cá cheguei liguei ao Pinto da Costa, conforme estava combinado, ele deu-me a notícia pelo telefone.

- Ficou zangado com ele?
- Não. As coisas são como são. É evidente que há situações nas nossas vidas em que… como é? Um comboio não pára duas vezes na mesma estação. Mas sabe uma coisa? Sinto-me muito feliz como sou e não mudei a minha maneira de ser. As luvas originais, as que a fã ofereceu ao avô de João Alves.
- Qual foi o jogador que mais o marcou enquanto treinador?
- Não quero distinguir um, há vários. Há jogadores que me marcaram em termos pessoais, muitos. Agora daqueles mais conhecidos, posso referir o Pauleta que levei para Espanha e que chumbou nos exames médicos. Era para vir embora e eu fui embora do Salamanca um bocado por causa da história com ele. Eles chumbaram-no nos exames médicos, e eu exigi que ele ficasse no clube, o presidente deu-me carta branca para que eu tomasse as decisões que entendesse.

- É supersticioso?
- Era muito. Agora menos.

- Desde quando?
- Desde sempre.

- Quem lhe incutiu isso?
- O Zé Maria Pedroto. Com o Pedroto, quando íamos a qualquer lado, o autocarro tinha que entrar de frente. E eu depois, mais tarde, também era assim. São as tais coisas que vão passando de treinadores para treinadores...usar a mesma camisola, ou o mesmo casaco quando se ganha. Houve uma altura em que comecei a usar um casaco de malha no inverno e comecei a ganhar. Quando chegou o verão usei o casaco à mesma, enquanto fui ganhando (risos). Gosto de entrar em campo com o pé direito. Quando era jogador do Benfica, gostava muito de ir à igreja com o Gaspar Ramos, antigo dirigente, antes dos jogos. Todos os domingos em que jogávamos, antes do almoço, ele ia comigo à igreja. Sou católico não praticante. Gosto muito de ir à igreja e estar sozinho. Ainda ontem estive em Fátima, com a mulher, a filha e o neto.

- Tem quantos netos?
- Seis.

- Algum vai ser jogador de futebol?
- Espero bem que sim. Os meus filhos também foram jogadores, mas sem terem atingido um grande nível. O mais novo ainda jogou no Benfica, nos infantis, mas fisicamente é pouco dotado. Mas eu sempre gostei mais que os meus filhos tivessem estudado algo seguro. Porque no futebol, ou é para ser craque ou então é melhor ter um bom plano B.

- Ou seja, pode vir a acontecer o que aconteceu consigo e com o seu avô. O sucesso no futebol salta uma geração.
- Espero bem que sim.

- Voltando às superstições. Há alguma coisa recuse a fazer?
- Por exemplo: quantas vezes já me pediram para tirar fotografia com as luvas calçadas. Está fora de questão. As luvas são sagradas, estão lá emolduradas e é sagrado, as minhas e as do meu avô. Aquilo para mim é quase uma coisa religiosa. Eu tenho muito orgulho nelas, tenho muito orgulho da família, mas não as utilizo, não me quero servir delas, nem tornar a coisa menos séria naquele amuleto.

- As luvas que utilizou enquanto jogador não são as da fã do seu avô.
- Não, claro que não. São umas luvas que o meu avô me ofereceu para eu seguir a sua tradição.

- O seu avô não usou sempre aquelas luvas pois não?
- Não até porque elas mal lhes cabiam nas mãos. Depois acabou por ir trocando por outras luvas. Aquelas usou naquele jogo.

- O João também foi trocando.
- Claro. Quantas luvas é que eu não dei a admiradores, quantas não me roubaram os adeptos quando iam festejar títulos.... Antigamente entrava-se nos campos, faziam invasões e deixavam-nos em cuecas. Isso aconteceu muitas vezes. Tive muitas luvas no meu percurso como jogador e muitas oferecia a pessoas por quem tinha grande consideração.

- Pode dar um exemplo?
- Dei umas luvas minhas para o museu do Benfica, estão lá. Dei umas a um grande amigo que tenho no FC Porto que me conhece desde esse célebre jogo do Freamunde, da questão com o Simões, que é o Mário. Dei a muitos amigos.

- E amizades do futebol, tem muitas?
- Tenho. O Pietra que foi meu colega de equipa, que é meu compadre, é o padrinho da minha filha; o Valentim Loureiro, a família Pedroto, gostava muito do Zé Maria, o mister era alguém de quem eu gostava muito. O João Manuel Nabeiro, e o seu pai, Rui Nabeiro, mas o João Manuel é da minha idade e fizemos uma grande amizade, alguns presidentes de câmara, o Mário Wilson também me marcou muito, tinha uma grande amizade por ele, Toni, todos aqueles meus colegas, o Humberto, o Chalana, o Carlos Manuel, o Zé Luís, tantos, tantos, o Bento era muito amigo dele, o Damas, o Folha. E tenho camisolas de ex-jogadores meus que me tratam por pai.

- Quem?
- O Moubandje, por exemplo, que jogou no último Suíça-Portugal, ele trata-me como pai. Fui buscá-lo a uma 4ª divisão, com 18/19 anos, tornou-se internacional A comigo na Suíça e foi jogar para a 1ª divisão, para a Super Liga Suíça através dessa subida de divisão.

- E portugueses, tem algum jogador mais chegado?
- O Paulo Bento, que é como se fosse da minha família, mas tenho tantos que é difícil nomeá-los... o Abel Xavier, o Calado, o Pedro Barbosa, o Barni, Caetano...

- Sente que está subvalorizado?
- Subaproveitado talvez. As coisas são tão claras e evidentes. Se eu fizer uma listagem de jogadores que descobri – mas não descobri nos grandes clubes, descobri nas terceiras divisões é que isso é que é. Sempre me interessei muito por ver jogos da 2ª divisão, das distritais. Sabe porquê? Porque houve alguém que me marcou muito neste campo, o Zé Maria Pedroto.

- Gostava de voltar a treinar?
- Não sei. Nunca tive empresário na minha vida e sei perfeitamente que o mundo do futebol está muito diferente, que para um empresário ele vai ganhar dinheiro com um treinador de 35 ou 40 anos porque vai trabalhar mais anos, do que com um de 65. Por outro lado, nunca fui pessoa de entrar por aqui e por acolá. O futebol está diferente, o futebol está comercial, está industrializado, hoje é de empresas, não é de um todo, é de meia dúzia de pessoas. É de empresários e os empresários que não percebem nada de futebol e que só querem resultados imediatos."

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