quarta-feira, 21 de março de 2012

O que não morre

"Era madrugada em Espinho, Toninho levantou-se, brusco, da cama, correu para a televisão - e sozinho na sala viu Lopes ganhar a medalha de prata nos 10 mil metros dos JO de Montreal. Tinha 16 anos, ainda desejou ser como ele, mas como jogava futebol, futebol continuou a jogar. Meses depois, apareceu num treino levado pela lembrança súbita da madrugada do Lopes. Foi um espanto - mas só lá voltou ao saber que o SC Espinho estava para ir ao Porto fazer a Volta à Sé. Perguntou se podia, como não treinara mais, Jorge Ramiro disse-lhe que não, mas, vendo-o enrodilhado na nuvem de tristeza que lhe criara, o treinador deu o dito por não dito - e ele ganhou com 300 metros de avanço. (Essa foi a primeira coisa que ele me contou, um dia...) Três meses de atletismo lhe bastaram para ser campeão nacional de crosse, seis para fazer a melhor marca mundial de juvenis nos 5000 metros. O resto é uma história ainda mais fantástica, atraiçoada por um destino cruel.

Dos JO de Los Angeles saiu com o bronze na légua. Para pagar a Canário o favor de lhe espevitar a prova deu-lhe 1000 dólares (por pudor isso ele nunca quis contar, mas eu sei...) - e largou a promessa de que o ouro que lhe escapara na volta final, o apanharia em Seul. Um vendaval de lesões não deixou. Levou mais de 200 injecções, cortisona em «dose de cavalo». Tentou a fuga ao inferno num fisioterapeuta que o punha a penar dentro de água gelada do mar e lhe encharcava as pernas com mixórdia de iodo e algas. Foi tudo em vão. Em 1991, aos 31 anos, deixou, destroçado, as pistas. Sem saber que a razão era já efeito da rara doença congénita que lhe matara o pai e a irmã - e o atacara a ele: a hemocromatose, o excesso de ferro no corpo.

Domingo, ouvi num abalo: morreu António Leitão. Achei que quem se faz eterno nunca morre - e ao imaginá-lo ali, à minha beira, a dizer-me que na primeira vez que ganhara ao Lopes e ao Mamede não descansara enquanto não lhes foi pedir desculpa (e essa foi a última coisa que ele me contou...) percebi que duas lágrimas me fugiam, frias, dos olhos..."


António Simões, in A Bola

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