segunda-feira, 26 de março de 2012

O Azeiteiro-de-cabeça-d'unto

"O Azeiteiro-de-cabeça-d'unto acordou nessa manhã com uma ligeira indisposição gástrica que atribuiu ao facto de andar a abusar de caranguejos, santolas, lavagantes, percebes e burriés a todas as refeições. Olhou-se ao espelho e procurou debalde a marca das olheiras de uma noite mal dormida. O Criador, na sua infinita bondade, lançara-o no Mundo sem essa maçadora virtude da consciência que actua sobre os salafrádios como uns quartilhos de cafeína ou como a voz esganiçada e ininterrupta do velho grilo falante. O Azeiteiro-de cabeça-d'unto tinha por hábito por hábito levantar-se cedo. Tomar um fortificante pequeno-almoço de café com leite e fruta à discrição, que em sua casa nunca faltava fruta, e sair em peregrinação a centros comerciais antes de seguir para a sua diária visita ao dentista.

Pode-se dizer, com propriedade, que se tratava de um homem rico. Só para esbulhar meia-dúzia de pobres diabos que ainda caíam na asneira de confiar no aprumo da sua espinal medula, enfiara ao bolso qualquer coisa como 28 mil euros no curto espaço de dez meses, sem contar com as alcavalas dos subsídios e com as mordomias de umas viagens ao estrangeiro. O Azeiteiro-cabeça-d'unto não era homem de grandes desperdícios. Necessitava, está bem de ver, de alguns alqueires de banha de porco para alindar o seu crâneo helicóidal, assim a modos como que a deixar a cabeça tão gordurosa por fora como por dentro. Infelizmente para o seu sistema digestivo, o Azeiteiro-de-cabeça-d'unto foi acometido, nessa manhã de que falamos, de vómitos contínuos. Desconfiou ter ingerido algo de estragado: ou marisco, ou fruta... Ou mesmo leite azedo. Sentiu que tinha abusado, da mesma forma como muitos e muitos milhares sentiram que ele havia abusado deles. Enquanto a própria sociedade o vomitava, como se fora um produto estragado, o Azeiteiro-de-cabeça-d'unto vomitava-se a si própria. Quando finalmente ergueu a cabeça para o espelho, sentiu nojo. E vomitou-se outra vez. Mas a porcaria não saiu. Já lhe estava no sangue..."


Afonso de Melo, in O Benfica

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