sábado, 29 de novembro de 2025

Da identidade ao impulso em Liverpool: como explicar a queda de um gigante


"O de Klopp tinha identidade. O de Slot parecia seguir esse caminho. Mas o gasto excessivo, as más escolhas e a perda de referências destruíram o plano que a sustentava

Klopp, ainda no Dortmund, sentava-se à frente de quem queria contratar. Com Watzke ao seu lado, a corporizar o polícia-bom, disparava algo do género: «Comigo, terás de dar 120 por cento, ultrapassar todos os teus limites. Estás preparado? Se não estiveres, é melhor para todos que o digas já.» Com esta energia em bruto, os jogadores que levava para o Ruhr incendiavam a Muralha Amarela, que por sua vez puxava pelas restantes bancadas até transformar o Westfalen num verdadeiro inferno.
Ich will eure Stimmen hoeren (Eu quero ouvir as vossas vozes)/Ich will die Ruhe stoehren (Eu quero romper com o silêncio)/Ich will das ihr mich gut seht (Eu quero que me vejam claramente)/Ich will das ihr mich versteht (Eu quero que me compreendam)
Ich will eure Phantasie (Eu quero a vossa ilusão)/Ich will eure Energie (Eu quero a vossa energia)/Ich will eure Haende sehen (Eu quero ver as vossas mãos)/In Beifall untergehen (Rodeado pelos vossos aplausos)
Jürgen travestia-se em Till Lindemann e o estádio explodia ao ritmo dos riffs de Rammstein. Rédeas soltas, jogadores e adeptos carregavam em conjunto. O céu avermelhado caía em cima da cabeça dos rivais e engolia-os sem misericórdia.
Anos depois, em Liverpool, onde é impossível substituir aquela canção que é tudo, o seu coração e o batimento de alta rotação encaixaram na perfeição em Anfield. Fundiram-se com os dos jogadores e adeptos. O emocional Liverpool abraçou o não menos emocional Klopp, cuja identidade never say die e o nível de exigência que a consolidava voltaram a reerguer o clube até aos patamares da excelência.
Com dificuldades para competir com clubes-estado, os Reds concentraram-se no processo em campo. Com os jogadores adequados, contratados ou nutridos, primeiro em Melwood depois na ventosa Kirkby. Com a inegociável agressividade, a tal pressão que roubava fôlego e rebentava os adversários por dentro. O gegenpressing era o 10 que o alemão não tinha — nem queria ter. Mesmo com o modelo a evoluir no sentido de manter o controlo do jogo.
Klopp mantinha, ao mesmo tempo, o grupo imune a uma ou outra intromissão dos dirigentes no reforço do plantel. Para o técnico, tinha de ser o jogador certo. Se não, não valia a pena. Apenas um, entre os mais relevantes, terá escapado a esse critério. Talvez aí o técnico tenha sentido que esgotara os ‘não’ que dissera a quem mandava. Darwin, defendido também pelas estatísticas, foi contratado por 85 milhões ao Benfica. Um capricho, cujas consequências ainda hoje ecoam. Não só obrigou à reestruturação não planeada da frente de ataque, desviando-o do centro do terreno, como se lhe atribui, nos arredores de Anfield, um título perdido devido aos seus inúmeros falhanços. Não basta haver boas intenções. O uruguaio sempre foi um corpo estranho como atleta e indivíduo, apesar das tentativas de integração por parte do grupo.
Ao fim de nove anos, quando se vive o futebol como o antigo lateral-direito do Mainz, que o modesto clube viu como sucessor mas também pupilo dedicado de um revolucionário como Wolfgang Frank, mais cedo ou mais tarde o desgaste torna-se sufocante. Klopp quebrou. Disse adeus. Para viver o resto da vida que não estava a viver. O Liverpool seguiu em frente. Encontrou em Slot uma liderança também emocional e, no seu modelo, pontes para o do germânico.
Na primeira época sagrou-se campeão. Inteligente, mudou pouco, aceitou o legado, avançou quase pé ante pé. Chiesa foi o único a entrar, Matip e Thiago acabaram a carreira, Darwin perdeu relevância e acabaria por deixar Inglaterra no verão passado. Fez com que o compatriota Gravenberch ganhasse nova vida, enquanto Gapkpo cresceu na influência. Não se sentiu a mudança, ainda que não haja pessoas iguais.
Perdeu a Taça da Liga para o Newcastle, ficou-se pela quarta ronda da Taça principal — aqui sim de forma surpreendente perante o Plymouth Argyle, do Championship — e pelo desempate por penáltis nos oitavos de final da Liga dos Campeões, diante do futuro campeão PSG. Mas o mais importante foi garantido, o regresso aos títulos e logo numa época em que a exigência até seria menor.
No entanto, o Liverpool-poupadinho acabara. 483 milhões de euros depois levaram Isak, Wirtz, Ekitiké, Kerkez, Frimpong e Leoni para o lado dos Reds e, mesmo assim, por culpa das lesões, Szoboszlai primeiro e Curtis Jones depois já tiveram de assumir o papel de lateral-direito. É claro que em Liverpool se recuperaram 240 milhões do investimento, com algumas vendas, a principal a de Luis Díaz, mas não deixa de parecer all-in de um clube que não precisava de fazê-lo dada a posição em que se encontrava. E um all-in quase nunca tem por detrás um plano. É impulso.
De não mudar quase nada, Slot passou a mudar muito, deslumbrado com o que lhe caiu em mãos. Contudo, Frimpong é em quê parecido com Alexander-Arnold, que saiu em saldos para Madrid? A influência do lateral, que pensava como médio, que não só aparecia em terrenos adiantados para cruzar ou, por dentro, para ajudar a construir ou rematar, como virava o centro do jogo e lançava transições, onde é que a vemos no sprinter? E há alguma parecença entre Wirtz e Díaz? Já Kerkez, apesar da boa vontade, anda longe da profundidade de um Robertson de outros tempos, quando os laterais eram fundamentais no modelo. Já quanto à inspiração perdida com Jota, é insubstituível. Aí não há nada a fazer.
Foram 270 milhões gastos em Ekitiké e Isak para só jogar um. É quase anedótico. Nem o novo-rico mais imprudente faria tal loucura. E Arne Slot até ajudou à festa ao quebrar o crescimento do francês para lançar o sueco rebelde, faltando-lhe feeling para o momento. No meio disto tudo, ainda ficou Guéhi por contratar depois de estar fechado, numa altura em que Konaté, em final de contrato, acumula erros, Leoni está lesionado com gravidade, e Quansah, menino da casa, se consolida em Leverkusen.
É o caos. Um Liverpool sem um plano lógico, ainda com as faixas de campeão aos ombros. Sem este, não há identidade. Não há uma forma única de jogar. Não há conforto para os futebolistas. Apenas para que fique mais tempo em vigor a desgraçada Lei de Murphy."

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