"Com Lionel Messi acabarão as assimetrias e antilogismos de um jogo ao qual se rouba cada vez mais espaço e se apresenta mais monocórdico nas ideias e nos modelos de jogo
Não sei o que será de mim quando Messi pendurar as botas, e é tão provável que o faça ainda lá, onde o diabo tantas vezes as perdeu durante toda a sua eternidade.
Tenho a certeza de que um amor como este nunca morre e que irei voltar a vibrar, por entre o irrevogável vernáculo e o habitual ioga forçado na cadeira, com o jogo que me fez o que sou. Só que a Pulga levará com ela as assimetrias e antilogismos que restam e que outros também plantaram ao longo do inesperado conto de fadas que começou aos pontapés numa bexiga de boi. É o último dos moicanos. A derradeira pedrada no charco, que só pode ser dada pelo mais resiliente dos imortais.
Neste futebol de segundo ecrã e desmembrado pelo zapping, que ninguém vê de seguida até ao fim e depois se recupera aos bochechos nas redes sociais, Haaland e Mbappé despertarão certamente mais tempo de atenção no Clash of Clans ou em futuras sequelas das Tartarugas Ninja do que pelo que deixarem espalhado pelo relvado. Mesmo que, por vezes, chegue a ser grandioso. Como já foi. Inúmeras vezes.
Enquanto caminhamos para ser engolidos em definitivo pela nossa própria sombra, também o futebol moderno perde o brilho que nos engordou a alma na juventude muito antes de termos de pensar com receio do maldito colesterol. Ao mesmo tempo que se copiam os vencedores de longa duração, também as táticas enterraram bem fundo, por trás das balizas, a lamparina e o génio. Vestiu-se o talento de um colete de forças. Os estádios demoliram o peão e tornaram-se anfiteatros para espetáculos artísticos com clientela de classe média alta, onde antes os riffs de guitarra serviam de tira-nódoas para o óleo derramado na ganga coçada dos blusões, enfeitados ainda com pins e emblemas de coser à mão.
O jogo sacudiu o barro como um cão quando se farta da humidade e hoje mal se sujam os calções. É só Nenés (um abraço, Tamagnini!). Os heróis foram esvaziados por laparoscopia pelos clubes que representam. Tornados marionetas por um dono e não um patrão, libertados no relvado durante 90 minutos sempre numa infernal contagem decrescente até voltarem de novo à jaula.
O VAR estrangulou o golo e quando este finalmente grita, já o faz meio desmaiado, à tatear para que o segurem e se aguente nas canetas. Se tivesse banda sonora apropriada a filme de terror far-nos-ia duvidar da nossa própria sombra. As regras passaram a penalizar bem para lá da intenção, juntaram-lhe o acidental e o aleatório, com roupagem de negligência e de mais sei lá o quê. O jogo ficou insosso, mesmo que seja embrulhado como junk food.
Mas pode ser de mim. Já foi tempo em que Diego era um punho cerrado em nome de um país e Riquelme o meu Maradona triste, para quem o próprio apelido chegou a ser tão pesado que pediu que o tratassem simplesmente por Juan Román. Mesmo com os olhos quase sempre a apontar para baixo e a caneca de mate junto ao abdómen, humilhava rivais com caños, via rotas por explorar e gavetas onde encaixava a bola por cima de camisas impecavelmente engomadas e guarda-redes caídos.
Acabou entretanto também a era dos artistas de rua. Um Zizou capaz de espantar e entreter todos os condutores parados no semáforo com mil e um malabarismos até pegar ao batente seu Ronaldinho. O chapéu gaúcho pousado ao contrário na calçada a apelar generosamente por uns trocos que ajudem na sua arte de futebolista de Shaolin, e a fuga depois em drible, bola colada aos pés, por entre a multidão, ao primeiro grito da polícia. Joga bonito.
Foram-se as décadas dos livres diretos em parábola. Zico, Platini, Baggio, il Codino. Diego, sempre ele, claro. Ou em potência, saídos da canhota demolidora de Roberto Carlos ou do pé direito, capaz de empregar todos os efeitos e mais alguns, do mais pernambucano dos Juninhos.
Ainda mais trás, Francescoli jogava como príncipe altivo. Esquecia-se do protocolo, mas não da classe cancha fora, e o manto seguia-o para todo o lado sem que se atrapalhasse. Tal como Van Basten, aquele a quem não faltava nada. Dennis the Menace Bergkamp inventava ressaltos e efeitos, e nem precisava de assistente para serrar ao meio defesas inteiras com truques de ilusionismo. Já o Fenômeno despejava um punhado de vírgulas sobre textos sem pontos finais, como os de Saramago, e candidatava-se ao Nobel em cada golo. Fintaria o planeta inteiro em cima de uma jangada de pedra.
Kaká e Michael Laudrup conseguiriam, se precisassem, encontrar o passe certo no escuro. Tal como Xavi, sobretudo se fosse para Iniesta. Ou Messi.
Porém, foram tantos mais. Hagi, Stoichkov, Romário, Shearer (os vóleis), Hugo Sánchez (as bicicletas!), Rijkaard, Cantona, Cafu, Sócrates, Matthäus, Gullit, Henry, Baresi, Maldini, Nesta, Pelé, Jairzinho, Rivelino, Garrincha, Eusébio, Puskás, Chalanix, Best, Cruijff, Di Stéfano. Cristiano Ronaldo! Rui Costa. Figo. Nani. Quaresma. E ainda Balakov, Madjer, Valdo, Schmeichel, Aimar, Saviola, Lucho, Luisinho, Ricardo Gomes... Só dos que me lembro, e nem tenho grande memória.
Desconfio que o meu futebol já não volte, mesmo que surjam sempre atores diferentes com capacidade para representar bem um determinado papel. Só que a modernidade roubou espaço e confiança às ruas onde nasciam os heróis e ainda um ou outro super-herói, e a uniformização das táticas e dos modelos, a falta de liberdade em campo e, sobretudo, os control freaks em que nos tornámos nunca permitirão um regresso ao passado. Caminhamos de forma acelerada para estragar um jogo que nunca foi perfeito, mas era sim especial. E tal como em muitas outras facetas da sociedade não há ninguém que nos trave.
Os nossos filhos não são ou serão tão apaixonados como nós fomos. Nunca saberão o que é contar os dias para um Europeu ou Mundial, ou acumular três ou quatro encontros num só dia. O jogo continuará a ser cada vez mais rico até se tornar mais pobre. Perdemos a inocência e acabámos com o romantismo. E os nossos descendentes saberão que fomos nós."