terça-feira, 10 de setembro de 2024

A igreja Lageana que fez de mim ateu


"Talvez o leitor não saiba, mas há coisa de uns anos decidi criar uma igreja. O momento entusiasmava e pedia algum sentido de humor. Nada contra as outras religiões ou igrejas, mas nenhuma outra tinha na sua origem uma equipa que marcara 72 golos em 19 jogos na Liga portuguesa. Ao leme, um homem de palavras simples e mensagens fortes, talvez não o treinador que tínhamos idealizado, mas aquele que se sagraria campeão pelo Benfica, numa equipa onde pontificava um rapaz chamado João Félix. A Igreja Lageana, nascida no frémito das goleadas sucessivas e do bom futebol, após uma recuperação de sete pontos que parecia impossível, nasceu como uma piada e viria a sucumbir, adivinharam, quando a coisa deixou de ter graça.
Podia dizer-lhe, caro leitor, que a brincadeira deixou de ter piada porque foi repetida vezes demais, mas não. Foi só uma daquelas piadas que envelheceu mal. Hoje, se me perguntam pela Igreja Lageana, respondo que me tornei ateu. Não é a mais pura das verdades, mas é a melhor forma de explicar que me desiludi com Bruno Lage. A dimensão quase religiosa do seu momento veni vidi vici foi substituída por uma das piores séries de jogos que me lembro de ver no Benfica. Depois de uma época do título em que subimos aos céus, a segunda época de Lage foi a descida ao inferno. É curioso como, de um momento para o outro, alguns dos traços que muitos apreciavam no treinador tornaram-se difíceis de suportar, uma demonstração cabal da desorientação que se apoderara de Lage.
Uma auditoria forense desse tempo e de tudo o que sucedeu desde então mostra-nos que o Benfica tem sido quase sempre melhor a monetizar os seus jogadores do que a jogar à bola. O problema é que o loop em que as finanças entraram raramente foi destilado em equipas capazes de estar à altura do Benfica. Desde que Bruno Lage passou pelo clube, a situação tem-se agravado, delapidando património do clube - financeiro, desportivo e, não menos importante, identitário. Não admira que num clube em que, muitas vezes, só o dinheiro parece ser importante, as dimensões mais imateriais do património sejam esquecidas. Se a mística benfiquista fosse um ativo transaccionável, já a teríamos vendido ao Wolves para mais tarde a recomprar ao Nottingham Forest, pagando 10% por cada uma destas complexas operações de intermediação.
À medida que os treinadores se vão sucedendo no Benfica e pouco ou nada muda para além do senhor que se segue, apetece perguntar quantos mais serão vítima do cemitério em que o clube se tem vindo a tornar. De certa forma, gabo a coragem a Bruno Lage para tentar tocar violino nesta banda filarmónica de improviso. Não tenho dúvida de que o novo-velho treinador do Benfica acredita na sua capacidade para ser ele o homem que dá a volta ao texto e endireitar tudo o que segue torto até cair de vez. Seja porque acredita na sua capacidade, seja porque vê no plantel condições para fazer muito melhor, seja porque o benfiquismo o move, seja porque outro treinador não aceitou, seja por todos estes motivos, a partir de agora todas as dúvidas, todos esses avanços e recuos que suscitam dúvida, darão lugar a um novo ciclo em que acreditamos que tudo ficará bem outra vez. Para muitos, será uma espécie de ganhar para voltar a viver. Para outros tantos, será uma espécie de ganhar para esquecer.
Independentemente do que está mal, que vai muito mas muito para lá de Bruno Lage, também eu torço para que dê certo e voltemos a vencer o Nacional por 10-0, mais que não seja para nos inebriarmos durante uns tempos. Mas, ao contrário do que dizem algumas vozes mais esperançosas, o verdadeiro teste do algodão está hoje à vista de todos e permite outra conclusão. O problema que nos conduziu a um novo ciclo de esperança depois da depressão, não se resolve com esta solução diretiva. É aliás grave que estejamos perante um ciclo de liderança que, até sensatez em contrário, se prolongará até outubro de 2025. Seria prudente que este tema fosse debatido amplamente e reconsiderado pelos atuais protagonistas do clube, independentemente do impacto que Bruno Lage for capaz de produzir.
Aquilo que hoje se observa é, à sua maneira, o desnorte de uma espécie de viciado no jogo, na curva descendente do transe que o capturou e o convenceu de que a vitória era inevitável, bastaria continuar a jogar, a tentar recuperar as perdas depois de ter ignorado repetidamente a velha máxima de que só se deve apostar aquilo que se está disposto a perder - no caso do atual presidente, o lugar de eleição que ocupava no universo de memórias benfiquistas. Um património sem preço, não transacionável - ironicamente, mais um pedaço da identidade do clube delapidado. Faz algum sentido que um benfiquista como Rui Costa tenha deixado isto acontecer? É uma das minhas maiores perplexidades.
Tem-se por hábito afirmar, quando um novo treinador chega, que esse passa a ser o meu/nosso treinador, como se alguém fosse impedir um novo treinador de trabalhar e mostrar aquilo de que é feito. O voto de confiança parece presumir que a solução milagrosa para os problemas do Benfica está na suspensão momentânea de qualquer espécie de dúvida e na capacidade de deixar que seja o coração a comandar, o mesmo órgão que, conjugado com alguma razão, poderia ter comandado tantas e tantas decisões que teriam dado outro rumo ao clube.
É importante que o novo treinador do Benfica sinta que os adeptos, a direção e a estrutura estão com ele, que o seu sucesso será o sucesso dos benfiquistas, mas não deixo de sentir que este exercício de fé contém uma ideia de acriticismo perigosa para o futuro. Seria, por exemplo, como se alguém me tentasse convencer, apesar de todas as evidências contra, que será o benfiquismo de Rui Costa a torná-lo um bom gestor da SAD ou um presidente com uma personalidade forte ou um líder inspirador da mudança que prometeu, mesmo depois de termos ensaiado essa suspensão da dúvida com ele, e acreditado por momentos, plenos de coração, que bastaria dizer que ele era o nosso presidente. Já não tenho esse dízimo em mim, e parece-me que não estou sozinho. Que Bruno Lage seja a boa nova de que esta época tanto precisa, mas evite-se o salto de fé por associação. A realidade mantém-se e, se isto parecer muito imaterial ao leitor, sugiro a leitura do Relatório e Contas da SAD, um aviso para o que se seguirá caso continuemos a apostar a casa no casino. Por isso, não peçam para nos unirmos em torno de uma suposta divindade que castiga e perdoa, que testa e recompensa, e que por isso merece a nossa veneração incondicional. Acontece que essa divindade é tristemente terrena. Não admira que tantos de nós se tornem ateus."

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