terça-feira, 13 de agosto de 2024

Nem tudo o que reluz é ouro


"Mais ouro, menos ouro, a verdade é que enquanto o Estado gastar metade com a atividade desportiva de cada cidadão do que gastam os seus parceiros europeus, não saímos da cepa torta…

A delegação olímpica portuguesa regressou de Paris com o melhor pecúlio medalheiro da história da participação do COP nos Jogos, com o bronze de Patrícia Sampaio no judo, a prata de Pedro Pablo Pichardo no triplo salto e de Iúri Leitão no Omnium, e o ouro da dupla Iúri Leitão e Rui Oliveira no Madison. Significa isto que o Desporto português está melhor do que há quatro anos, ou há oito, ou há doze, ou há dezasseis, ou há vinte, ou há vinte e quatro? Não, está, infelizmente, na mesma, como a lesma. E estou particularmente à vontade para falar sobre esta matéria porque antes dos Jogos de Paris começarem escrevi que o número de medalhas, para o bem e para o mal, nunca poderia ser um aferidor da qualidade do nosso Desporto. E também porque de há muitas décadas a esta parte tenho referido, das mais variadas maneiras, que Portugal não é um País de Desporto e que a classe política não liga nada, para lá da cosmética, ao setor. Quem tiver dúvidas desta realidade, atente neste simples facto: o Estado português gasta com a atividade desportiva de cada cidadão metade do que gastam em média os restantes Estados da União Europeia. Mais palavras para quê?
O problema do Desporto é que não dá votos. É por isso que nunca houve um entendimento entre os partidos para criar um plano plurianual, que fosse pensado não aos quatro anos de uma legislatura mas a várias décadas, que realizasse um trabalho de base que desse frutos reais e duradouros. Como vivemos apenas de medidas avulsas, de avanços e recuos que impedem a continuidade, mantemo-nos na nossa mediocridade apenas enfeitada com uns fogachos aqui e ali conseguidos, sem que se chegue ao cerne da questão. A situação só conhecerá alteração quando quem nos governa (e como há alternância na ocupação do poder é necessário um acordo de regime) aceitar que o Desporto é um investimento e não uma despesa e que gastar dinheiro no Desporto é, a prazo, poupar na Saúde, na Justiça, na Educação ou na Segurança Social.
Mas pode perguntar-se se o que se visa com um investimento no Desporto é conquistar medalhas olímpicas? E a resposta é um rotundo não. O que se visa é dar à população portuguesa, das mais sedentárias da Europa, a possibilidade de ser mais ativa e saudável, de praticar atividade física desde muito cedo de forma organizada, de ganhar cultura desportiva, e dessa forma criar níveis de socialização suscetíveis de gerar comportamentos mais solidários e evitar vícios que podem ir da teia da droga à dependência dos aparatos eletrónicos. Se tudo isto for feito — e estamos a falar de um investimento que além de infraestruturas requer, sobretudo, capital humano especializado — talvez dentro de alguns anos a face do País possa começar a mudar.
Imagine-se, por absurdo (atendendo à realidade como a conhecemos), que antes do fim de 2024 os dois maiores partidos portugueses acordavam num pacto para uma política desportiva pensada a vinte anos e começavam, de imediato a pôr mãos à obra. Provavelmente, só começariam a ser vistos resultados daqui a uma dúzia de anos, o que poderia projetar uma representação olímpica de qualidade lá para 2044, porque da massificação haveria de surgir uma elite capaz de competir ao mais alto nível. Ou seja, a prioridade seria sempre tornar a população mais ativa e saudável; e dessa atividade em massa surgiriam com naturalidade talentos que caminhariam depois para a especialização. Ora, isto não é inventar a pólvora, é apenas seguir os passos dos países que apostaram em defender a saúde dos seus cidadãos através do Desporto.
Agora coloquemos os pés no chão e calcemos os sapatos dos governos, deste e dos anteriores: perante um SNS (de incontornável utilidade) cheio de problemas; reivindicações (seguramente justas) de professores, médicos, enfermeiros, polícias, militares e funcionários públicos; necessidade de reequipar as Forças Armadas; premência na requalificação da rede ferroviária; ou vontade de aliviar a carga fiscal — tudo medidas que podem render votos a curto prazo —, será que há espaço para pegar numas centenas de milhões e avançar com um plano para o Desporto, mesmo reconhecendo os méritos, que só venha a dar frutos daqui a mais de uma década? Infelizmente, neste sistema pensado para quem está no poder apresentar serviço a cada quatro anos, não me parece — o que nos remete para o início desta peça e para os fogachos de Paris, depois dos fogachos de Tóquio e antes dos fogachos de Los Angeles — que no País que gasta metade do que os outros parceiros europeus com a atividade desportiva dos seus cidadãos, alguma coisa vá mudar. Sim, é verdade, agradecendo as medalhas no Madison ao Iúri e ao Rui, nem tudo o que reluz é ouro…
Dos quatro pódios conseguidos por Portugal em Paris, dois foram no ciclismo de pista. Quando, há 15 anos, Laurentino Dias, que tinha a tutela do Desporto, e Artur Lopes, presidente da Federação de Ciclismo, apostaram, cada um disponibilizando os meios que lhe competiam, na construção de um velódromo na Anadia, ouviram das boas e das bonitas: para quê, se não tínhamos tradição na pista? Depois dos estádios de Aveiro e Leiria, ia nascer mais um elefante branco na Anadia! Era dinheiro deitado à rua, sabe-se lá com que intenção… Enfim, o costume em Portugal sempre que se pretende fazer alguma coisa, da Expo ao Euro, do CCB ao túnel do Marquês, da expansão do metro ao novo aeroporto, passando pelo Alqueva.
Felizmente, vozes de burro não chegam ao céu e o velódromo foi feito e tornou-se num polo de desenvolvimento do ciclismo de pista que, 15 anos depois, nos deu ouro e prata nos Jogos Olímpicos.
Para se ter sucesso no Desporto, é preciso plantar e ter paciência para que as árvores cresçam e a colheita seja farta. Também se pode ir comprar a fruta já madura, mas não é a mesma coisa…

PS — Parabéns a todos os atletas que estiveram em Paris, aos seus técnicos, e ao COP, que, através de José Manuel Constantino, nunca calou que, em termos de Desporto em Portugal, o rei vai nu.

PS2 — O simbolismo é evidente. José Manuel Constantino esperou pelo fim dos Jogos Olímpicos de Paris para se despedir da sua existência terrena. A notícia da sua morte, sem ser uma surpresa, não deixa de ser brutal, porque contrasta com a vontade de viver que dele emanava, e com os projetos que tinha para o futuro. Portugal perde uma voz livre, que nunca se calou em defesa do Desporto. Eu perco um amigo de décadas. Que o seu exemplo faça escola, e as suas palavras corajosas e sábias sejam, mais cedo do que mais tarde, levadas à prática."

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