sábado, 3 de agosto de 2024

A raiva incontida de Elena que mandou 110 mil para um sítio feio


"Elena Schiavo foi considerada a melhor futebolista do seu tempo e tinha um feitio polvoroso.

Nos tempos da velha A Bola, ainda com todos os grandes mestres que fizeram o favor de me ensinar, almoçava com frequência com a vice-diretora do jornal e maior acionista, dra. Maria Margarida Ribeiro dos Reis, filha de um dos fundadores, o tenente-coronel Ribeiro dos Reis, inseparável amigo de Cândido de Oliveira, ambos com profundos conhecimentos no futebol internacional. Foi por causa da Doutora, como era tratada por toda a redação, que simpatizei com a figura de Stanley Rous, o presidente da FIFA de 1961 a 1974, e que ela conhecera ainda muito jovem. A simpatia veio por terceira pessoa, mas a verdade é que Sir Stanley Ford Rous era um conservador empedernido, como qualquer velho inglês, e tinha morrido há pouco tempo quando os almoços no Farta Brutos e no Papa Açorda se foram tornando mais frequentes. Curioso porque, falando com uma senhora, tentava formar a imagem de um homem que tanto lutou contra o crescimento do futebol feminino, tendo chegado a proibir, como presidente da The Football Association, todos os clubes ingleses de terem equipas de mulheres a jogar nos seus campos, nem que fossem de treino. A dra. Maria Margarida abandonou A Bola antes desta cair no pavoroso buraco de onde nunca mais saiu. E morreu antes dela, por assim dizer. De uma e de outra restam memórias de um tempo feliz em que o trabalho e o divertimento se misturavam para fazer páginas únicas que jamais voltarão a ser o que foram e se arrastam, hoje em dia, até com o cabeçalho amputado, num deserto aflitivo e que dói em muitos de nós. Enfim, comecei por aqui mas onde queria chegar era a outra senhora, também ela tão infeliz como a Doutora no fim da sua vida: Elena Schiavo, nascida em Mereto di Tomba, uma cidadezinha do planalto veneto-friulano, no dia 14 de janeiro de 1949, felizmente ainda viva para assistir ao triunfo universal do futebol das mulheres.
Em 1971 participou no primeiro Campeonato do Mundo Feminino, uma prova abafada pela imprensa europeia e atirada pela FIFA para o poço do olvido, a despeito de os jogos no Estádio Azteca da Cidade do México terem recebido mais de 110 mil espetadores, números hoje em dia impossíveis de cumprir. A Itália seria eliminada numa das meias-finais, pelo México, jogo muito condicionado por um árbitro tão caseiro que fez Elena perder a tramontana e andar por ali, pelo meio do campo, ao som insuportável de assobios estrídulos, a prometer e a dar porrada a quem lhe aparecesse pela frente. Sempre foi de paciência curta como um pavio de pólvora. Mas isso não a impediu, e se calhar até ajudou, de ser considerada a melhor jogadora do mundo do seu tempo. «Li ho insultati alla fine, frustrata dalla sconfitta», diria mais tarde. «Mandei todos os cento e dez mil para o lugar que vocês sabem».
Foi em 1963 que Elena começou a jogar em Cormons, uma cidade perto da sua, junto à fronteira com a Eslovénia, num clube apelidado de Furie Rosse, o que vinha a propósito do seu feitio sensível. Nessa altura também praticava atletismo tirando partido da sua estatura alta e esguia. cinco anos mais tarde, a Federação Italiana, à revelia da vontade da FIFA de Sir Stanley, criou a Série A do Campeonato Italiano Feminino, e clubes como o Génova, a Lazio, a Roma e o Bolonha abraçaram o projeto. E, assim sendo, Elena Schiavo tornou-se apelativa para quem ansiava por títulos. Em 1969 foi para a Roma e ganhou o campeonato; em 1970 mudou-se para o Real Torino e ganhou o campeonato outra vez. Continuou a carregar o facho ardente da vitória no Astro Corsetterie Torino, no Falchi Crescentinese e no Montecatini, com vitórias na Coppa Itália, mas a sua transferência para a Juventus em 1975 foi como uma praga que Elena não merecia. Um lesão no joelho impediu-a de fazer um jogo que fosse com a camisola juventina e, pouco depois, o clube acabou com a sua equipa de raparigas. Nos quatro anos que se seguiram vestiu quatro camisolas diferentes, mas só foi campeã com a do Valdobbiadene. Tinha trinta anos quando as dores constantes a obrigaram a parar. Estava no Gorgonzola, verteu lágrimas tão amargas quanto as que tinha entornado na camisola azul da Itália em 1971, um momento que jamais conseguiu esquecer. «Mi ricordo ancora le voci dagli spogliatoi», afirmou numa entrevista recente. «Sonhávamos trazer aquela taça tão bonita para casa, mas o árbitro queria as mexicanas na final. Perdi a cabeça e chamei-lhe os nomes todos». Um ano antes, contra a Dinamarca que venceu esse Mundial apagado da História, Elena tinha recebido 60 mil liras por um golo, em Turim, contra a mesma Dinamarca. «Ho spedito un rigore in curva. Mi hanno dato della puttana in 60 mila. Però non male vero? 60 mila erano venuti a vederci». Sempre foi uma mulher sem medo das palavras."

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