sábado, 18 de maio de 2024

Todos deveríamos ser um pouco Isco Alarcón


"Médio espanhol ganhou o direito, aos 32 anos, a estar entre os possíveis eleitos de Luis de la Fuente, para o Euro, recusando-se a ‘fingir de morto’ no ocaso de uma brilhante carreira

Sentir inveja não é bonito, mas com duas ave-marias e três padre-nossos deveríamos poder assumi-lo à boca-cheia. Sem constrangimentos de qualquer ordem. Seria mais fácil se todos soubéssemos, antecipadamente, o preço a pagar por cada um de todos os nossos pecados. Poderíamos reduzi-los a algo tão simples como pagar portagem, de um ponto de vista religioso, na curta autoestrada da vida, ou até a admitir naturalmente que não virá nenhum mal ao mundo se abdicarmos de um ponto na carta de condução só para vivermos mais intensamente aquela transgressão especial que nos faz disparar os níveis de adrenalina. E para quem não gosta de ter credos à mistura, acredite ou não, seja em algo ou em tudo, cobiçar o que tem o próximo não deveria definir nunca se estamos na presença ou não de um mau carácter.
Se Diego Maradona ainda fosse ainda vivo, não tivessem negligenciado a divindidade e deixado por beijar o chão que ele pisava, talvez um destes dias me metesse num avião até Buenos Aires, arriscasse depois pelo meio de La Boca até à efervescente Bombonera, só para lhe dar aquele abraço e dizer do mais fundo das estranhas: como te invejo, puto amo, pelo que fizeste do meu mundo! Sou o que sou por tua causa. Não importa o quão estúpido tal parece. Talvez ainda o faça com Rui Costa, se ainda conseguir encontrar o criativo no futebolista e o futebolista no dirigente. E com Messi, claro. Por tudo e mais alguma coisa. Ou Cristiano. E a culpa será daquela fome megalómana, tão pouco portuguesa, que poderia satisfazer de uma só vez três ou quatro Bolas de Ouro, e a ele o deixa sempre a olhar de soslaio para o prato do vizinho. Seríamos tão gigantes se todos tivéssemos um pouco disso. Definitivamente mais fortes.
Deveríamos, acho, fazer o mesmo com Isco. Mesmo que hoje não seja o melhor dos dias. Habrá que rezar! Porque nos restantes, confesso-vos, sinto uma inveja profunda de señor Alarcón, criado e formado entre Valência e Málaga, tornado deus até lhe ser roubada a imortalidade em Madrid, exposto depois ao mundano no lado errado de Sevilha e, por fim, reencarnado na melhor versão de si mesmo. Aquela leveza, quase principesca, não se encontra em qualquer um. Somos todos tremendamente desengonçados e limitados, em comparação, para a conseguirmos imitar. O saber pisar não se ensina, tem-se. O toque, esse, nasce connosco. Não é treino, não é uso. Vão por mim, também não passa nos genes. Há algo em alguns de nós que permite que se forme uma simbiose com uma bola de futebol. Isco era capaz de fazer trabalhos forçados, isto se a linhagem o permitisse, ao mesmo tempo que lhe ordenava que se fizesse de morta debaixo do pé direito. E ela obedecia.
Não há nada que nele não seja incrível naqueles anos dourados em tons de branco. Abria cabines telefónicas uma atrás da outra até achar a que tivesse sinal, e fingia-se por vezes de Zidane, escondendo-se atrás de roletas, onde acertava no preto quando era preto e vermelho quando o croupier o lamentava para a casa e para quem perdera mais uma pequena fortuna ou a hipoteca da casa. As poupanças de uma vida. Orientava-se sempre, mesmo contra o vento, Bernabéu fora, acelerando por entre a multidão, disposto a entregar a encomenda ao destinatário. Contornava adversários, a gravidade e todas as amarras táticas que lhe colocassem à frente. Era um génio do drible curto, um distribuidor sem erros. Um grande entre os maiores.
Um príncipe nunca deixará de ser príncipe, mas poderá não vir a tornar-se rei, ser politicamente incómodo ao ponto de ensombrar quem reina e tenha de seguir para o exílio. Dão-lhe, se não o tiver já na herança, um castelo isolado para ocupar com a família e os homens de confiança, e passará a encher, a partir daí, o resto dos dias e a pança com carne de javali e vinho das terras da vizinhança, até por fim morrer e ser enterrado e esquecido. Não será de todo um mau fim.
Aceitar o ingrato destino seria sempre o caminho mais fácil para quem afastam da glória, mesmo que injustamente. Ancelotti, Don Carletto, que praticamente extraiu quase tudo de quase todos, nunca conseguiu aproveitar todo o talento que dali jorrava. Por vezes, era a tática. Outras, outra coisa qualquer. Defendia-o, porém não o compreendia. O bom do Sampaoli, mais tarde, em Sevilha, diria que nunca correspondeu às expetativas. No entanto, mesmo assim, ele continuou. Fez-se à luta.
Todos deveríamos ser um pouco Isco Alarcón. Encarar e aceitar as adversidades da mesma forma, acreditar que, mais tarde ou mais cedo, o talento se irá sobrepor a tudo. Esperar até ao limite da nossa paciência que um dia reconheçam que a razão sempre esteve do nosso lado. Agora, por toda a Espanha, lamenta-se a lesão e espera-se que a contratatura nos gémeos se vá embora às custas de muitas rezas e mezinhas. Porque não só é injusto para ele como, para muitos, reapareceu como melhor médio espanhol - para o CIES o terceiro do continente com maior impacto no jogo -, e não pode deixar de estar, sim ou sim, no Euro-2024. Aos 32 anos.
Contudo, não posso falar só de Isco. Ali ao lado, onde o médio ofensivo malaguenho deu errado, Jesús Navas só poderia dar certo. Do princípio ao fim. Extremo e depois ala, lutou durante toda a carreira com crises de ansiedade e saudades de casa crónicas, que o levaram a rejeitar convites, como o do Chelsea, bem antes de assumir finalmente que era tempo de aceitar o destino e rumar a Inglaterra para o Manchester City. Em boa hora, porque conquistou o título inglês, apenas o quarto da história do emblema.
Se o compatriota tinha demónios externos com que lidar, Navas foi obrigado a ultrapassar-se a si próprio e aos seus medos. Tornou-se uma lenda, ganhou vários troféus europeus, foi campeão continental e mundial, e deixa agora os andaluzes, aos 38 anos, sem nada mais para dar. Nem mais uma gota de compromisso."

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