domingo, 26 de maio de 2024

O trunfo de ser e parecer genuíno


"Rui Costa tentou apaziguar os adeptos e abrir caminho à paz na relação com Schmidt. O treinador continua, mas com tolerância mínima

Rui Costa deu, enfim, uma prova de vida. Foi, manifestamente, uma escolha pensada, essa de falar só depois de passada a tempestade e já com o navio em porto seguro. Não me parece ter tido vantagens, bem pelo contrário. O povo benfiquista teve tempo e razões para acumular iras e opiniões firmes que estiveram na origem de uma contestação que acabou por envolver o treinador, pouco hábil a comunicar com o adepto latino, e o próprio presidente, que, pelo silêncio, transmitiu uma ideia de pouco corajoso e pouco decidido a enfrentar e a resolver os problemas.
A entrevista aberta a (quase) toda a comunicação social nunca poderia ser suficiente para emendar o erro de base, mas poderá ter ajudado a diminuir os efeitos.

O modelo
A comunicação do Benfica optou por um modelo inovador. Um grupo de jornalistas em redor do entrevistado, com direito a duas rondas de perguntas. Uma importante vantagem em relação às habituais entrevistas exclusivas ao canal do clube e, isso, deve ser devidamente salientado. Um critério aberto e que, respeitando princípios essenciais de independência, ofereceu desde logo uma imagem de disponibilidade do presidente para responder a todas as questões, por mais difíceis e incómodas que se apresentassem.
Não é, porém, um modelo ideal para a construção global de uma entrevista. Porque perde orientação, estrutura jornalística e coerência editorial. A entrevista, apesar de todas as evoluções tecnológicas no âmbito da comunicação, continua a ser um género jornalístico autónomo e de uma densidade específica. Há grandes jornalistas que nunca foram bons entrevistadores e há excelentes entrevistadores que nunca foram grandes jornalistas. A boa entrevista deve promover um todo, até mesmo uma certa empatia, entre entrevistador e entrevistado, sobretudo nos momentos de confronto.
Daí que seja muito mais difícil conseguir-se um resultado consistente para o entrevistado quando a entrevista resulta de uma soma de perguntas avulsas e que não obedecem, nem poderiam obedecer, a uma estratégia comunicacional. Daí que no final da entrevista de Rui Costa muitos benfiquistas tivessem ficado com a sensação de que muita coisa ficou por responder. Do plano de desenvolvimento das modalidades, ao crescimento do desporto no feminino; da análise da atual situação financeira, à relação com as claques mais radicais do clube, que continuam a afetar gravemente o seu património reputacional e se tornaram num grave problema interno, que deixa antever batalhas difíceis.

O entrevistado
Dentro das circunstâncias do meio caminho escolhido entre a entrevista e a conferência de imprensa, Rui Costa teve uma prestação positiva. Ser e parecer genuíno em frente às câmaras é sempre um trunfo. Seja na política, seja no desporto. Rui Costa não se apresentou como uma gestor frio e racional, mas como um presidente com amor à camisola, apaixonado pelo clube e companheiro dos seus adeptos. Para a maioria do universo dos benfiquistas é uma imagem importante. Para as necessidades de uma empresa desportiva com dimensão europeia seria pouco mais do que irrelevante. Mas toda a comunicação tem de saber definir bem as suas prioridades e a prioridade de Rui Costa era, manifestamente, a de abrir as portas ao apaziguamento com os sócios e os adeptos do clube, começando a preparar a nova época e a abrir espaço para a reconciliação entre adeptos e o contestado treinador, que continuará, sim, mas com mínima margem de tolerância.

Sérgio e a sede de cervejinhas
Longe do aquecimento global que todos os jogos lhe provocam, Sérgio Conceição ganha estatuto de cidadania e não prescinde do humor como forma inteligente de comunicação. Esteve bem a lembrar a confidência de Rúben Amorim, quando o treinador do Sporting disse que já tinha bebido umas cervejinhas na festa do título. Sérgio diz que, agora, deve ser a vez dele beber umas cervejinhas para celebrar o que chamou - e bem - a grande festa do Jamor. Só faltou dizer que no fim da época, iriam beber umas cervejinhas juntos.

A liberdade e os direitos
A discussão sobre a liberdade de expressão está na ordem do dia. Não há cão, nem gato que perca oportunidade de dizer o que acha sobre o assunto. O fogo começou no lugar improvável do hemiciclo da Assembleia da República. Pode dizer-se tudo? E José Pedro Aguiar-Branco respondeu: sim. Caiu o Carmo e a Trindade. Tudo? Mas se não se pode dizer tudo, quem é que marca a linha vermelha? Essa é uma questão a que os jornalistas estão habituados a responder. É que nenhuma liberdade é livre de atropelar todos os direitos."

Vítor Serpa, in A Bola

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