sábado, 18 de maio de 2024

Liberté, Fraternité, Mbappé


"É conhecida, porque inusitada e especial foi, a história de quando Emmanuel Macron, ao ler o preto no branco nos jornais e escutar os zunszuns e perguntando às pessoas certas que são acessíveis a um presidente de França, se predispôs a telefonar a Kylian Mbappé, em 2022. Os rumores arreliavam-no. Sendo ele quem é e sabendo o efeito que a pessoa que ele é exerce nas pessoas que sabem quem ele é, Macron quis não tão subtilmente exercer a sua influência estadista ao ouvido de um jogador, um mero futebolista pensarão vocês, para lhe dizer: “Quero que fiques. Não quero que te vás embora agora. És tão importante para o país.”
A operação de charme falaria ao coração de muita gente, qualquer anónimo cidadão francês sentiria as suas fundações a abanarem. Afinal, era o presidente, a máxima figura do Estado, a dar-se ao trabalho de ligar para pedir que ficasse, mas, extravasando o telefonema, a história é ainda mais peculiar pela reação de Mbappé, então com 23 anos, inamovível perante a investida: enternecido, agradeceu a gentileza a Macron, dizendo-lhe que a decisão entre ficar no Paris Saint-Germain ou sair para o Real Madrid era dele e apenas dele, imune a pedidos por mais que viessem dos cargos mais altos do país. A postura, pelos vistos, não caiu mal, mais tarde seria convidado para repastos com o presidente no Eliseu.
Kylian Mbappé, e lê-se ‘Émebáppé’, é feito de histórias e há outra, de quando ele era gaiato e mais suscetível a encantos, que ajuda a entender o futebolista que não se desfez perante o cortejo presidencial. Tinha 14 anos e ainda jogava à bola em Bondy, bairro nos extensos subúrbios de Paris, quando o Real Madrid o convidou a viajar até Valdebebas, centro de treinos merengue, com tudo pago, para durante uma semana conhecer os cantos à casa que lhe queria cuidadosamente mostrar. O clube que mais priva com o êxito quando comparado a adversários europeus, cheio das suas catorze Liga dos Campeões ganhas, pediu a Zinedine Zidane, na altura diretor-desportivo, para um dia ir buscar no seu carro luxuoso, de surpresa, o petiz francês, que até lhe perguntou se precisava de tirar os sapatos para entrar.
Quando regressou a casa, a mãe, Faysa, disse-lhe que teria de limpar as casas de banho da escola onde dava aulas, em Bondy, nos três dias seguintes.
Foram estas as fornalhas que cozinharam Mbappé sem o deixarem queimar em ilusões. Filho de uma antiga andebolista virada professora, árabe e de ascendência argelina, e de Wilfried, um camaronês e cristão que ainda é treinador de futebol no clube do bairro, o desde cedo fenomenal Kylian nunca desprendeu as raízes do chão. Enquanto colou pósteres de Cristiano Ronaldo no quarto, vestido à Real Madrid, ouviu os pais falarem-lhe do sucesso que é efémero e da finitude da fama do futebol, urgindo-o a estudar e fazendo com que aprendesse a falar o inglês que hoje domina e o espanhol que lhe vai dar jeito não tarda. Estará para breve a sua mudança para o Real Madrid, segredo menos escondido do futebol, adiada há dois anos por obra da intervenção de Emmanuel Macron e graça - ou será ao contrário? - dos 630 milhões de euros que o Paris Saint-Germain concordou pagar-lhe, ao longo de três anos e até 2025, no mais chorudo contrato alguma vez feito no desporto.
No domingo, o tão valorizado jogador, melhor marcador da história do clube, fez a sua derradeira aparição no Parque dos Príncipes. E pareceu ser uma mesa de cabeceira face ao peso que teve nas cerimónias do adeus à temporada.
Nada houve de homenagens bonitas ou sentidos gestos de despedida da parte do PSG, que organizou uma festança de entrega do troféu de campeão para os jogadores e preferiu exaltar a despedida do speaker oficial, voz dos jogos caseiros dos parisienses desde 1994. Não fosse o 256.º golo que deixou em campo, além da tarja gigante a cair de um dos topos do estádio, pendurado pela claque, e dir-se-ia que Kylian Mbappé nunca por ali passara, discreto e irrelevante, quando é tudo menos isso. “Cresci como homem, com toda a glória e erros que cometi. Nem sempre mereci o vosso amor ao longo destes sete anos, mas nunca vos tentei enganar”, dissera o jogador, um par de dias antes, no vídeo com o qual deu o au revoir aos adeptos.
De queixo levantado, olhos vidrados na câmara e discurso fluído, com todos os gestos não verbais que sugerem confiança, Kylian Mbappé falou pausadamente durante quase quatro minutos e sem um segundo dedicado a Nasser Al-Khelaïfi, presidente catari do PSG que é hoje o clube que é devido aos triliões injetados pelo Catar. Neste jogo de impressões dadas para fora, perceções públicas e nuances a que também se joga no futebol, terá sido o representante do emirado a desferir o primeiro dos golpes baixos quando, em 2022, segurou uma camisola com “2025” estampado nas costas, no Parque dos Príncipes e ao lado de Mbappé, na pompa com que anunciou a renovação com o jogador. O gesto traiçoeiro deu-lhe a volta: o último dos três anos de contrato estava preso a uma cláusula que dependia da vontade do jogador.
Pensador pela sua própria cabeça, o tectónico Mbappé, planetário futebolista que não tem empresário e se aconselha nos pais, a quem entrega os deveres de o representarem nas conversas que negoceiam milhões e nos apertos de mão que os fecham, não quis ficar em Paris. Com um Mundial conquistado, outro perdido na final, três golos deixados nas duas edições na maior das partidas do futebol e 12 já marcados no torneio, tem um destino para cumprir em Madrid. Mas, aos 25 anos, o terramoto que o francês outra vez provoca no futebol já não pode ser encarado como inesperado.
Kylian Mbappé ostenta mais golos do que Lionel Messi e Cristiano Ronaldo tinham com a mesma idade, comparação numérica relevante porque há muito que o francês é falado para suceder aos estelares estarolas que endeusaram os golos no futebol e os valorizaram, como nunca, enquanto medidores de sucesso. Além de ter arrancado o mais caro contrato alguma vez dado a um desportista, é plausível esperar que Mbappé acabe por superar Miroslav Klose no topo dos goleadores em Mundiais (o alemão tem 16, o francês vai nos 12, empatado com Pelé). Os 180 milhões de euros que custou, em 2018, para o PSG o contratar ao AS Monaco são a segunda transferência mais milionária do futebol, atrás dos €222 milhões de Neymar, e só não obriga o Real Madrid a encarecer o preço na sua etiqueta porque optou por sair de Paris no final do contrato.
A diferença, agora, no trajeto do futebolista-tubarão que comparece a entrevistas com rémoras de seguranças a rodeá-lo para revistarem o edifício antes dele entrar, do ambicioso jogador que domina como poucos a oratória e pode não o parecer, mas é consciente das repercussões dos lugares onde surja, é que Mbappé precisará mais do Real do que o clube carece de uma estrela como ele.
O francês que rejeita contratos publicitários com a Coca-cola, o KFC ou a Betclic, mas, como toda a gente neste mundo, é apanhado na curva ao ter a ligação umbilical do Catar na sua fortuna, irá para uma instituição onde há hierarquia e “todos correm” entre os atacantes, disse Vinicius Jr. feito o enterro do Bayern na Liga dos Campeões. Foi a mensagem subliminar de um futebolista quase tão sublime quanto Mbappé, o recado está entregue e o professor tio que estima o bem-estar merengue, Carlo Ancelotti, bonacheirão que é um falso leviano a permitir veleidades, não será um treinador para dar trela a uma versão pachorrenta de Mbappé, que tantas vezes se escusava a defender no PSG quando a equipa não tinha a bola. O simpático Ancelotti cultiva o à-vontade em Madrid, na liberdade dada aos jogadores incentivou-lhes a responsabilidade, mas longe está de aligeirar a equipa para o à-vontadinha que o totémico Mbappé tinha em Paris, tem na seleção de França e terá, supostamente, no futebol mundial.
O francês reconheceu as suas “qualidades e defeitos” no seu adeus ao PSG, não no que o clube abdicou de dar ao jogador querido por Emmanuel Macron por representar a França real, assente na diversidade dos banlieues, do talento cultivado na periferia da farta Paris que fornece a espinha vertebral à seleção nacional da nação que tem na mestiçagem de culturas, na mescla de origens, a sua força. “Conto com o Real Madrid para libertar o Kylian para os Jogos Olímpicos”, disse já o presidente da mesma França que se rebelou, empurrada pela extrema-direita de Marine le Pen, contra Aya Nakamura, a cantora nascida no Mali e com vida no país desde criança, quando se noticiou que supostamente Macron a convidara a cantar na cerimónia de abertura do evento.
Esta é a encruzilhada de Kylian Mbappé, prestes a sair do país da liberdade e da fraternidade como um dos franceses mais populares no planeta, íman de atenções e dínamo de reações à mínima ação que hoje tenha. Ele quer tudo, provavelmente vai ter tudo, mas a história rumo à grandeza já será um pouco sinuosa, mesmo que ao de leve, já não tão em linha reta como previa."

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