sexta-feira, 1 de março de 2024

Medicina em Portugal: Falta de Formação, Desumanização ou Burnout? Venha o Diabo e escolha


"Partindo de um caso particular, a psicóloga Ana Bispo Ramires analisa a literacia emocional que os médicos devem ter ao lidar com pacientes, pois a capacidade destes em confiarem em quem lhes faz um diagnóstico “é um determinante real de um melhor prognóstico e de uma taxa de sobrevivência mais efetiva” 

 Ontem foi duríssimo.
Vi pela primeira vez medo nos olhos da minha irmã e isso destroçou-me. Já tinha visto tristeza, interrogação, vazio … mas medo vi ontem. 😞
Os resultados não são bons e o médico um verdadeiro calhau.
Apetecia bater-lhe com a frieza e falta de humanidade dele.
… esteve a imprimir as folhas todas à nossa frente e demorou 35 minutos a ler e a sublinhar 🙄 um silêncio de morte. Só suspirava e com um comportamento não verbal péssimo.
Depois, de rajada, diz: “Muito complicado o seu caso… então tem cancro da mama bilateral, agressivo. São tumores diferentes os que tem a esquerda e à direita. Tem que fazer quimioterapia, cirurgia, depois um tratamento de anticorpos durante um ano. Só o tratamento dos anticorpos são 80 mil… O seu tratamento vai ficar muito caro.”
No final rematou a dizer que não sabe se o tratamento vai correr bem, ou vai correr mal 😞
Não conseguiu explicar nada relacionado com a situação clínica em si, tipo de tumor, e claro nem uma palavra de alento… foi inacreditável.

Este é o relato real de quem, em situação de extrema vulnerabilidade emocional, coloca a sua vida nas “mãos” de alguns profissionais na área médica.
É também um extraordinário exemplo de como a falta de literacia emocional de uma forma geral, e em algumas profissões em particular, pode causar danos gravíssimos, seja no prejuízo de um prognóstico mais favorável, seja na redução da taxa de stress pós-traumático que muitas pessoas acabam por desenvolver.
Na realidade, sabe-se há muito (pelo menos em contexto internacional - por cá, ignorantemente, ainda não valorizamos) que qualquer diagnóstico de uma doença que envolva a perceção de risco de vida pode ser uma experiência traumática. Por esta razão, muitas pessoas têm sentimentos de medo, ansiedade e impotência, que podem levar a um quadro de stress pós-traumático - os estudos revelam que mais de 35% das pessoas, após superarem a doença, experimentam sintomas relacionados com este tipo de perturbação, resultando num decréscimo significativo da sua saúde mental e qualidade de vida.
A investigação científica também nos indica que a capacidade do(a) paciente poder CONFIAR: a) na equipa que gere o processo; b) em si próprio(a) e nos recursos que possui (internos ou externos) para lidar com a circunstância é um determinante REAL de um melhor prognóstico e de uma taxa de sobrevivência mais efetiva, uma vez que, CONFIANDO mais, a adesão à terapêutica e aos comportamentos de recuperação se torna francamente mais robusta.
Lamentavelmente, a transcrição do testemunho apresentado é, por todas as razões descritas, um exemplo claríssimo de uma prática profissional que, seja por que razão for (falta de formação do médico, falta de empatia ou burnout), não só é perfeitamente ultrapassada como completamente desadequada, negligenciando aspetos tão importantes para o processo de recuperação/cura que só não termina num tribunal porque a área da advocacia ainda não despertou para esta área em Portugal.
Mas também há boas notícias...

A médica radiologista ligou também nesse momento, e ela sim, explicou tudo, deu a perspetiva dela, adicionou imensa esperança nestes novos fármacos, falou da importância do apoio e da empatia.
Enfim, deu-lhe a informação que era necessária e algum colo.

E não, não foi preciso “inventar a roda” – foi “só” necessário conectar-se com o ser humano que tinha à sua frente e passar-lhe a informação pertinente para devolver o controlo possível sobre a situação: o que poderia esperar da intervenção médica, dos fármacos e que comportamentos deveria adotar (em termos pessoais e no que respeita aos outros significativos da sua vida) para potenciar positivamente os efeitos da mesma.
Ou seja, ilustrou de forma clara e inequívoca onde deveria colocar o seu esforço e controlo pessoal – e sim, isto pode fazer a diferença necessária para aumentar a não só a qualidade de vida como a saúde mental durante e pós-doença.

Quando as Soft Skills se transformam em Critical Skills
Numa profissão em que se esperam horas de trabalho excessivas e muitas vezes imprevisíveis, a deficiência relacionada com o sono é um risco ocupacional para os médicos e, consequentemente, para as pessoas que deles dependem.
Um risco que, aparentemente, nem os próprios dão o devido valor, senão vejamos:
A evidência de que o sono inadequado tem consequências significativas para a saúde e o desempenho cognitivo é robusta, sendo clara na literatura dos últimos anos que a) os défices de atenção associados a perturbações relacionadas com o sono podem afetar a capacidade dos médicos para desempenharem tarefas cognitivas críticas nos cuidados aos doentes, incluindo a avaliação e o planeamento do tratamento; b) a associação entre a privação de sono e a perturbação da conetividade e o processamento dentro e entre a amígdala, o círculo anterior e o córtex medial pré-frontal, resulta em desregulação emocional; c) a privação de sono diminui a capacidade de discernir e espelhar emoções o que pode impactar negativamente a capacidade dos médicos para a simpatia e o envolvimento interpessoal.
E estamos “só” a falar do sono... se juntássemos a esta discussão as repercussões de um plano nutricional deficitário dada a desregulação dos horários de trabalho, as implicações multiplicar-se-iam. E por que isto importa? Porque uma das principais competências críticas de vida é a nossa capacidade em saber gerir a nossa energia psicofisiológica por forma a não comprometermos a nossa saúde física/mental e, em última análise, a dos que dependem de nós.
Em suma:
Costumo ser acérrima defensora de que não podemos exigir a quem não possui conhecimento, mas no caso de determinadas classes profissionais (ex: médica), não podem as mesmas escudar-se mais na falta de formação que existe nestas áreas (o que é uma realidade, devendo as instituições académicas serem igualmente responsabilizadas) porque a capacidade de regulação energética, a literacia emocional e a falta de empatia, em alguns contextos, mata.
Por isso, se:
· Está cansado(a)? Aprenda a gerir as suas diferentes fontes de energia.
· Não sabe lidar com situações críticas? Procure formação profissional e/ou psicoterapia.
· Acha que a componente emocional é “secundária” à sua atuação? Talvez seja melhor mudar de profissão.
É que lidar com a doença já é suficientemente desgastante... com a ignorância é perfeitamente dispensável.

* os testemunhos foram transcritos com autorização dos próprios autores."

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