sábado, 17 de fevereiro de 2024

O Benfica teve penáltis para sobreviver ao seu devagar, devagarinho


"Contra o 14.º classificado da liga francesa que jogou, na Luz, ao ritmo caracol, os encarnados nunca conseguiram acelerar quando tiveram bola ou inventar soluções para desmontar um bloco adversário que insistentemente tentou furar pelo centro. Só com Ángel Di María a rematar duas vezes dos 11 metros, a segunda já nos descontos, deu ao Benfica uma custosa vitória (2-1) na primeira mão do play-off da Liga Europa

A certidão na chuteira direita de Orkan Kökçü, o barbudo turco que caminha com os pés para fora, não é difícil de aferir, menos de constatar, a reputação já o trouxe da Roterdão onde pontapeava bolas pelo Feyenoord com fama de ser um médio de mira afinada no remate, pronto a assumir livres diretos e de baliza nas intenções à mínima nesga de espaço que lhe dê visão para o alvo. Mas a perceção a rodear Kökçü que suscitou um alvoroço na Luz nos meandros do minuto 15 transviou-se da realidade em que Kökçü opera e mostrou a influência das circustâncias atuais na sinfonia que saiu das gargantas presentes num estádio.
A partida contra o Toulouse estava frouxa e aos solavancos, a jogar-se muitas vezes a passo, quando até Kökçü pareceu surpreendido com o túnel de espaço a convidar-lhe o gesto a que o burburinho dos adeptos o obrigou. Distando ainda uns bons 30 metros da baliza, o turco obedeceu, solene e espedito, rematando a bola desobediente à sua vontade: com o pé a ceifar um pouco de relva, o turco afrouxou a sua tentativa que fez o objeto redondo ressaltar duas vezes na relva e obrigar, por sua vez, o barulho das gentes a murchar. Tão lento e aos soluços estava o jogo, como um velho trator a gasóleo a mastigar no campo, que os adeptos se tinham entusiasmado desproporcionalmente com uma oportunidade que nem o chegou a ser.
Esses segundos, no fundo, poderiam resumir a primeira parte desinspirada do Benfica, incapaz de ser hábil a inventar jogadas no pouco espaço dado por um adversário coeso a fechar-se no seu meio-campo. Ao mínimo vislumbre de algo parecido com perigo poder aproximar-se da baliza de Guillaume Restes, as bancadas impeliam-se na manifestação de fervor. Queriam algum incitamento ao ruído, que a equipa puxasse pelas cordas vocais.
E o mesmo frisson se ouviu com Arthur Cabral rodeado por três adversários, na quina da área, onde um remate seu foi prensado; quando João Mário tentou outro, inócuo, na ressaca a uma murraça na bola do guarda-redes do Toulouse e quando Di María atraiu a atenção dos franceses para esperar que Rafa soltasse um sprint que lhe desse o alvo de um passe a rasgar. Nenhuma dessas jogadas de poucos passes e pouco trabalhadas, com pressa de sobra para parco cérebro coletivo a pensá-las, levou sequer um arrepio de perigo à baliza da equipa a fazer pela vida no campeonato francês que pareceu pegar ao Benfica, quase por osmose, o ritmo que trouxe na bagagem para Portugal.
Querendo sair da sua área em passes curtos e no pé, a privilegiar o controlo de bola, o Toulouse atacava com calma, sem pressas, por vezes carregando no travão de certas jogadas com potencial para acelerar na desgarrada pressão após perda de bola dos encarnados. Era lento e brando o 14.º classificado da Ligue 1, parecia querer entrar na área do Benfica com pézinhos de lã nas esporádicas ocasiões em que dela se acercou e o contágio da equipa de Roger Schmidt transformou a desesperança dos adeptos em assobios, só interrompidos com afinco quando Rafa, na esquerda, ajeitou um remate apontado à fusão do poste com a barra. Até esse remate, quase em balão, viajou vagarosamente contra o ferro, a colisão quase uma buzina premida na desolação dos adeptos.
A lentidão do Benfica a mastigar as jogadas perante um bloco com quatro defesas e seis jogadores comprimidos à frente da área infernizaria a Luz para o lado errado. Cada passe mal feito no ataque seria motivo para assobios na segunda parte, a impaciência a ser mais vocal à passagem dos minutos para com o afunilamento dos ataques. Da esquerda em direção ao meio ia João Mário com a sua natureza para matutar o que fazer à bola com calma e da direita rumo ao centro iam todas as receções de Di María, cada vez mais um estático lançador de passes que desencantam um companheiro escondido no mais ínfimo ermo na área.
Com Aursnes nas costas do argentino com a mesma cadência para o miolo, sobrava o estreante a titular Carreras, do outro lado, mas não foi pela sua timidez posicional - pouco atrevido a pisar o último terço do ataque - que o Benfica obteve a largura que lhe faltava com bola de modo a fazer dançar as peças do Toulouse. Pelo centro do campo, jamais os encarnados tiveram a rapidez e criatividade suficientes para mover os adversários e nem quando o árbitro, aos 67’, regressou da TV posta ao lado do relvado a apontar para a marca de penálti se ouviu um concerto de euforia por aí além nas bancadas. Tocada no braço de Logan Costa após vir de um canto, a bola parou e Di María transformou-a no 1-0 pouco depois de Schmidt tentar mudar alguma coisa.
As mudanças do treinador alemão trocaram um coxeio por outro, parecido mas não igual ao vulgarizado cliché futebolístico da “troca por troca”, Aursnes passou a ser lateral improvisado à esquerda (acentuando a sua tendência para espreitar o meio) para haver as acelerações de Alexander Bah na direita. A entrada de David Neres ainda pareceu agitar as águas diante da área, a imprevisibilidade do brasileiro irrompendo a custo do marasmo coletivo, provisoriamente. Do ímpeto agitado pela vontade do moribundo extremo surtiu só um remate de Arthur Cabral, à queima-roupa, antes de ser absorvido pelo devagar, devagarinho da equipa que mais do que os golos e assistência, depende cada vez mais de levar as jogadas a Di María e esperar que do seu pé esquerda saia outro passe genial, mais um coelho da cartola que algum dia terá o seu fundo.
Sem capacidade para controlar um jogo feito ao caracol, o manquejar coletivo do Benfica evidenciou-se quando o parco Toulouse, querendo mais do evento do que apenas existir, ousou acelerar como podia. Procurar com maior insistência Yann Ghobo, o seu desequilibrador posto na esquerda do ataque, em quem confiava levar as jogadas até Dallinga, avançado de processos simples que teve a mínima amostra de reação quando Aursnes, na sua área, aliviou para o ceu um cruzamento. Todos os jogadores do Benfica que lá estavam limitaram-se a olhar, passivos e impávidos, uns corpos amorfos que viram o ressalto ser alvo de luta pelos franceses até Desler, o lateral direito, rematar o empate (75’). Caído literalmente do céu, sim, mas também castigador das carências do Benfica.
Com Di María a escusar-se de tarefas defensivas (no golo do Toulouse, o ‘seu’ lateral do Toulouse foi cruzar, sem incómodo, à outra área) e Rafa a imitá-lo (o outro lateral marcou o empate), as desavenças coletivas da equipa tornaram a ser evidentes. Desunidos a defender, sem a capacidade de outrora para reagir às perdas de bola a acrescerem à desinspiração ofensiva, os encarnados tentaram atabalhoadamente o salvamento de um resultado que complicaria a viagem ao sul de França, onde o Liverpool foi perder há meses.
Deu-se então o assalto à área por todos os meios e circunstâncias, David Neres a forçar duelos individuais que lhe dessem hipóteses de remate e Di María a afastar-se um pouco da área em busca de espaço para a visar com cruzamentos do seu pé esquerdo. E seria uma bola posta lá, nos descontos, que Christian Elebi julgou ir a tempo de cortar, uma precipitação que o fez pisar Marcos Leonardo, ser expulso e dar ao argentino campeão mundial outra oportunidade para treinar o seu penálti em câmara lenta. De novo a encenar um duelo à filme western, a mirar o guarda-redes nos olhos enquanto avança lentamente para a bola, Di María esperou por um movimento para desviar o 2-1 do seu alcance. O relógio mostrava 98 minutos.
A alegria de um golo tardio que dá a vitória apertará para todo o sempre o gatilho dos festejos, o barulho ouvido na Luz foi instintivo, vindo das entranhas dos adeptos que viam um resultado sorrir a custo. Na próxima semana irá a Toulouse com outro recheio na mala, terá de pagar pelo acréscimo de carga no porão do avião, mas, a bem do Benfica, na bagagem convém estarem acertos de posicionamento defensivo e alguma estrutura que dê dinâmica ofensiva a uma equipa a depender em demasia da inspiração do seu mais laureado jogador que, sozinho, já não tem idade para acelerar tudo."

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