sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Desfizeram o sorriso de Jo desprezando a publicidade


"Jo Gaetjens e dois açorianos chamados De Souza fizeram parte da equipa dos EUA que bateu a Inglaterra.

Quando, na fase final do Campeonato do Mundo de futebol de 1950, os Estados Unidos bateram a Inglaterra por 1-0, no dia 29 de junho, no Estádio da Independência em Belo Horizonte, criou-se o mito de que muitos jornais ingleses, cujos repórteres receberam os telegramas com o resultado, ficaram tão confusos que, no dia seguinte, publicaram a vitória britânica por 10-1, retificando assim a incredulidade que deles tomara conta. Hoje há a certeza que a graça tinha a sua pilhéria mas que não passou disso mesmo, de uma graça. Nessa tarde, que o autor Geoffrey Douglas, mais tarde professor na University of Massachusetts, eternizou num livro chamado The Game of Their Lives, dois filhos de portugueses estavam presente: Ed e John De Souza. John Souza-Benavides, americanizado como John Clarkie Souza, saiu-se tão bem que acabou escolhido pelos jornalistas para o onze do torneio. Vivia em Massachusetts e jogava no Fall River Ponta Delgada como avançado. Edward Souza-Neto era seu colega de equipa e de seleção mas, apesar de serem ambos de ascendência açoriana, não eram sequer primos. Pelo menos primos de grau que se visse, como está bem de ver.
A realidade fria e contundente dos factos mandará dizer, e com toda a propriedade, que os Sousas de Ponta Delgada devem ter uma raiz familiar comum, mesmo que tenham emigrado para os Estados Unidos e se tenham transformado em Souzas com Z. Se os dois De Souza se bateram como heróis nesse jogo que viria a dar um filme com o título de The Miracle Match, o grande herói de todos os heróis, foi um tal de Joseph Edouard Gaetjens, nascido no Haiti, em Port-au-Prince a a 19 de março de 1924, e que tivera o descaramento (nessa altura valia tudo e mais um par de botas em relação às internacionalizações) de jogar um jogo de qualificação pelo Haiti antes de decidir vestir a camisola dos US of A. Depois de se ter fartado de ganhar jogos e campeonatos no Etoile Haïtienne, do qual foi titular logo aos 14 anos, interessou-se pelo futebol norte-americano e foi jogar para a American Soccer League e para o New York’s Brookhattan tendo, num instante, marcado 18 golos nos primeiros 15 jogos.
Ah! O basebol e o futebol americano podiam ser muito mais populares do que o semi-desprezado soccer, mas Gaetjens tornou-se uma figura. Uma figura! Ocupou páginas de jornais e de revistas e, depois de marcar o tal golo mágico que derrotou a Inglaterra, o mundo parecia abrir-se na sua frente a toda a largura dos portões do Paraíso. Triste engano. A vida resolveu contrariar-lhe as expectativas. Se foi Deus ou outro por ele, responda quem crê. Mas que a tormenta tomou conta da sua existência daí para diante, lá isso tomou. Jo, como era tratado, teve a possibilidade breve de jogar em França, no Racing de Paris, na IDivisão, mas não convenceu os treinadores que o despacharam para a IIDivisão e para o Olympique Alès. Alimentara um certo ego, o que é compreensível, e não estava para aturar a falta de consideração dos franceses. Assim sendo regressou às origens e ao Etoile Haïtienne. Corria o ano de 1954 e voltava a ser um homem feliz. Tão feliz que o seu sorriso branco como linho foi utilizado para uma campanha publicitária da Colgate-Palmolive. Passeava pelas ruas de Port-au-Prince vestido com elegância e de corta-palha à vista de todos, tão reluzente que parecia ter sido esfregado com lixívia.
O sorriso apagou-se-lhe na altura em que uma besta de 128 patas, François Duvalier, o sinistro Papa Doc, inventou uma sanguinária ditadura assente no que chamava de nacionalismo negro e mantida à custa de um grupo de assassinos, os Tonton Macoute – literalmente traduzido por o Tio do Saco, da expressão em crioulo haitiano que alude ao homem do saco que rapta criancinhas. Jo estava-se nas tintas para a política, mas não era suficientemente negro, apenas mulato. E parente de Louis Déjoie, o maior inimigo de Duvalier. Os seus irmãos, Jean-Pierre Fred Gaetjens refugiaram-se na vizinha República Dominicana para formar um grupo revolucionário e, precisamente no dia 8 de Janeiro de 1964, data em que Papa Doc tomou posse como ‘Presidente Vitalício’, o herói de Belo Horizonte também desapareceu de forma vitalícia. Ainda não cumprira 40 anos e nuca mais se soube a mais pequena notícia sobre o seu paradeiro. Apenas a palavra de um antigo prisioneiro de Fort Dimanche, a cadeia do regime, asseverou que fora capturado vivo e que, umas horas mais tarde, tinha sido espancado de tal forma que não lhe restava um único dente na boca. Destruíram-lhe a alva risada em segredo, desprezando a publicidade…"

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