quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Carta de amor às roulotes no futebol


"Tenho 40 anos e a minha primeira memória do Benfica é de quando tinha sete aninhos. O Benfica jogou a final da Taça dos Campeões Europeus em 1990 contra o AC Milan e tenho uma vaga memória dessa noite. Mas muito vaga mesmo. É um fascínio que foi crescendo aos poucos. Recordo-me de, no externato, jogar à bola com as outras crianças e nos dividirmos entre os que eram do Benfica e os do Sporting. Não hesitava para que lado ia, mas tinha imensas dúvidas em que jogador do Benfica escolher. Recordo-me de uma vez ficar em pânico porque o Yuran, o Isaías e o Rui Águas já tinham sido escolhidos e não saber que mais avançados o Benfica tinha (e como qualquer míudo eu queria ser um avançado). Tive que vergonhosamente admitir aos colegas que não conhecia mais nenhum avançado e me indicarem o César Brito. Um momento tão humilhante para a minha pessoa que, ainda hoje, passados 30 e tal anos, me recordo do que senti.
Depois veio aquele Benfica do Toni e os jogos épicos com o Paulo Sousa à baliza, o Futre a brilhar no Jamor, o 4-4 de Leverkusen e o 6-3 e aí já o bichinho me tinha tomado por completo. Quando acabou a época 93/94, já eu era um benfiquista a 100% que conhecia todos os jogadores do plantel e saberia dizer todos os resultados do campeonato e com jeitinho quem tinha marcado todos os golos. Nunca mais passei pela situação de não saber dizer «César Brito». Não era mais um poser (como aquela malta que usa t-shirts dos Nirvana, mas nada sabe sobre a banda de Kurt Cobain), era tão benfiquista como qualquer benfiquista da minha turma. Fazia parte por direito dessa tribo. E nunca mais a larguei. Não duvido que amo tanto o Benfica agora como o amava quando tinha 20 anos. É tão importante para mim agora como quando tinha 30 anos. É uma constante na vida. Um sentimento do ontem, do hoje e do amanhã.
Mas há o que sentimos e o que vivemos. E eu já vivi o Benfica de maneiras diferentes. Durante vários anos, no meu crescimento até adulto ia só ver o Benfica ao estádio de vez em quando. Basicamente, quando o meu tio me levava e isso na maioria das vezes era nos jogos grandes. Mentirei se disser que estava no estádio naqueles jogos do Vietname com 4.000 adeptos, já contando com os bombeiros e seus cães (estaria em casa a ouvir o jogo pela rádio). Mas jogos contra Porto e Sporting, grandes jogos europeus e nos momentos de maior entusiasmo, o meu tio ia e eu ia atrás incrivelmente excitado. Depois tirei a carta e decidi que iria passar a ir à Luz com maior regularidade. Ainda me lembro da 1ª vez que fiz a "loucura" de conduzir até ao estádio para ver um jogo: Benfica-Lille em 2005, com o Miccoli a marcar no último minuto. Depois andei muitos anos em que ia à Luz com regularidade, mas sem companhia constante: umas vezes sozinho, outras com o meu tio, outras com colegas da faculdade, amigos, namoradas, colegas do trabalho, era o que calhava. E vivia já acomodado à ideia de que ninguém era mais doido pelo Benfica que eu. Tinha até vergonha de admitir a extensão da minha doença. Talvez só a minha mãe o soubesse. Se perguntasse ao meu tio quanto ficou o Benfica-Famalicão de 93/94 estou convencido que ele não saberia dizer que foi 8-0 (como não saber isto!?). Vários dos meus amigos diziam o "Epá, nem sou sócio, eles é que o ganham. Ah, mas quero ir ver o jogo com o Porto!".
Achava que era o último dos Samurais, alguém que tinha sido incrivelmente afetado por um bichinho e tinha que esconder à sociedade a extensão da minha febre, antes que me internassem. Se alguém dissesse que o Benfica deu 7-0 ao Famalicão em 93/94 eu chegava a ficar calado e não corrigia para «foi 8-0. E o Celestino fez dois auto-golos». Se me perguntassem «em que estás a pensar?», eu iria mentir e raramente admitir que muito provavelmente era no Benfica. Se ouvisse alguém a dizer «Sabes o Sérgio? Pá, o gajo foi ver o Benfica ao estrangeiro! Que granda maluco. Era mesmo eu que gastava dinheiro nisso»... Eu talvez fosse capaz de dizer «hum hum» e abanar ligeiramente a cabeça como quem concorda, quando no fundo morria de inveja do Sérgio, por ter feito isso.
Até que os conheci. Fui a casa do Nuno e ele disse «porque não apareces nas roulotes no próximo jogo?». Fui e conheci a Magda, o António e a Ana. E depois o Daniel que coleciona vídeos de todos os jogos do Benfica, o Manuel que sabe todos os resultados, o Aires que vai a todas as deslocações ao estrangeiro, o Sérgio que cresceu na claque, a Mariana que fala tudo sobre as modalidades e o Paulo que vai lá sempre, mas nem entra no estádio. Foi uma transformação na minha vida. Deixei de me sentir um alien e percebi que afinal não estava sozinho. Todos até podem viver o Benfica de maneira diferente da minha, mas vivem-no a 100% de forma apaixonada. Como eu. E são todos diferentes, todos iguais. Uns mais novos, outros mais velhos. Uns com trabalhos mais intelectuais, outros mais funcionais, uns de esquerda, outros de direita. Mas ou tivemos muita sorte ou escolhemos muito bem. Tornámo-nos num grupo enorme incrível já com tantas histórias para contar. Da ida a Leiria em que voltámos com covid. Da deslocação a Barcelona e que no dia seguinte em Madrid ainda andávamos encharcados da chuvada que apanhámos na cidade condal. Da viagem a Amesterdão, com escala em Bolonha para comermos uma pizza. Daquela vez em Alfama que revemos na televisão o 3-0 ao Barcelona e festejamos os golos como se estivessem a ser em direto, para deleite dos turistas lá na tasca. Das inside jokes, influenciadas pela muita cerveja e que não podem ser contadas aqui, que envolvem cães e o Roger Schmidt.
Foi um grupo que nasceu pelo Benfica, mas já vai muito além do Benfica. Ali, nas roulotes, fiz amigos para a vida. Daqueles que estão nos meus momentos negros e nos meus momentos de euforia. Nos dias em que há jogo e em que não há jogo. Em Portugal e no estrangeiro. Entrar naquele mundo encantado das roulotes é como entrar num clube em que a palavra-passe é Benfica e é a coisa mais linda que se possa imaginar. Os pré-jogos (e pós-jogos) duram horas em que, regados a muita cerveja, se conversa com 30 pessoas ao mesmo tempo sobre o onze inicial, política, rivais, sexo, memórias, agruras da vida, piadas, trabalho e planos para os próximos dias. E quando damos conta chegámos às roulotes às 15h e saímos à meia-noite. Quem nunca foi às roulotes, nunca foi verdadeiramente ao Estádio da Luz.
7 de Abril de 2023. O Porto vence na Luz por 1-2 e arrastamo-nos no final do jogo de volta às roulotes. Abraçamo-nos, reconfortamo-nos uns aos outros, mas a tristeza e a revolta é geral. Não podíamos ter perdido com eles outra vez. É uma noite negra. Até que a nossa tia (quem nos serve a cerveja e a todos nos chama de sobrinhos) faz o que nunca fez: coloca música a tocar. A Calm Down do Rema. De forma espontânea, começamos todos a rir e a dançar como se fosse a noite mais feliz da temporada. Foram minutos mágicos e a determinado momento parei e olhei à minha volta. Vi-os a dançar e percebi que, depois de muitos anos, tinha encontrado o meu mundo, tinha encontrado os meus. E que já podia dizer de forma segura e sem vergonha: o futebol, vivido da maneira certa, não é doença, não é febre, nem é fanatismo. É vida. É paixão. É amor e alegria. Somos todos muito mais felizes e de alma cheia por nos termos a nós e ao Benfica nos nossos corações. Ser do Benfica é ter na alma a chama imensa."

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