"Receber um telefonema inesperado, do nada, para uma voz entrar pelo tímpano com os decibéis de uma terrível notícia estremece cada célula nossa. É um teste da vida, exercício de resistência às fundações sem que haja treino de preparação, vivemos e morremos e é a morte dos outros que nos testa. “O seu pai não aguentou”, a mãe morreu, “o avô já está lá em cima”, a avó seguiu, ninguém quer ou espera ouvir uma variação destas, nem acha possível ser tocado por elas e muito menos ter de depois ser um transmissor dessa novidade, podemos aceitar que um dia isto acaba para todos, pior é mastigar a dor da morte alheia que nos enluta.
Quando nascemos é para uma separação, diz-se que as mães dão à luz e um dos primeiros atos de cada vida é trinchar o cordão umbilical que trazemos da barriga delas, corta-se a ligação que perdura no invisível e caso a vida nos mantenha a simbiose de perto, a sina de ficar sem mãe torna cada um de nós num venerador do atraso. É o credo mais comum, que seja para tarde a morte de quem nos fez viver e a João Neves tocou a infelicidade de saber que a mãe morrera, os dois tão novos, muito dele a morrer tão cedo.
Um rapaz de 19 anos ficou sem mãe e à dor que nenhuma idade conhece truques para amenizar, porque jamais os saberá, a sociedade acrescentou puxar essa morte para as primeiras páginas de jornais e os destaques de sites. João Neves é um jogador de futebol do Benfica, já internacional português, para a idade que tem joga e faz bastante, sendo futebolista sabe da exposição mediática atrelada ao dar nas vistas na profissão, mas a pior das notícias para ele deveria ser notícia de parangonas só por ele se tratar de um adolescente que a cada três dias veste a camisola do clube com mais adeptos em Portugal? Não bastaria deixar um adolescente lidar com a dor da melhor forma que conseguisse?
A morte que nos leva alguém cava um buraco impossível de tapar, nunca superamos o luto, essa companhia a que nos temos é de acostumar e que tocou a João Neves a uma segunda-feira. Na terça, estava em Tavira para o funeral e na quarta, por vontade dele, voou até Toulouse. À quinta-feira era titular no Benfica. Acabou a chorar, as lágrimas a escorrerem na face imberbe enquanto devolvia os aplausos dos adeptos do seu clube. As palmas de muitos porventura se tenham devido à apologia do compromisso, ali poderiam louvar um jovem que apesar ‘daquilo’ escolheu a dedicação à equipa. Mas, se por acaso foi esse o caso, não deveria.
A vida é confusa por si só e as pessoas, em cima disso, entrelaçam-lhe mais confusões, dizia um amigo em resposta ao desabafo de outro que “os adeptos romantizam” e “misturam as coisas” inocentemente: a “paixão” e o “compromisso” com um jogador, se calhar, precisar de uma fuga para a frente que lhe afaste a cabeça do luto por uns breves momentos. João Neves quis jogar, do mesmo amigo que tem a empatia no sítio onde todos a deveríamos estimar li a esperança de ter sido o jogador “a usar o Benfica e não o Benfica a usá-lo”. Não o conheço, nunca sequer estive perto de João Neves e sou capaz de garantir que terá sido isso mesmo, e ainda bem.
Quando era domingo, a morte já com quase uma semana na vida de João Neves, ele voltou a jogar. E ao quarto minuto no Estádio da Luz ouviu a sintonia de um aplauso para António Silva (perdeu, também recentemente, o avô) e o jogador soube o que aí vinha. Já estava encasacado no banco, a dar descanso à língua que empurra contra a bochecha quando tem a bola em campo, quando se levantou para agradecer a apoteose concedida pelos adeptos durante o minuto 87, o seu número. Era o som do reconhecimento da dor dele, que não é deles. E fossem estas todas as notícias dadas sobre um futebolista que perde alguém - a de um público, em comunhão, tentar aliviar o luto do visado com uma demonstração de afeto e carinho - e o processo com certeza que seria menos pesado para ele.
Já basta a um atleta a dor de lidar com uma perda. Não deveria ter que ser lembrado do que a causou e pensar que a morte de um familiar, por si só, é considerado notícia."
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