"O desporto deixou-se apanhar na teia dos critérios da conveniência política dos Estados e precisa urgentemente de voltar a ser livre
O tema é complexo e raramente tem sido tratado com algum desprendimento da argumentação considerada politicamente correta, ou seja, aquela que nunca põe em causa um padrão de pensamento tido por consensual e que não explora a oportunidade de rutura com o estabelecido.
Falo do facto das principais organizações desportivas, a FIFA e a UEFA, por exemplo, no futebol, mas também do Comité Olímpico Internacional, estarem hoje reféns do poder político dos Estados, acompanhando interesses geoestratégicos, económicos, militares e outros, não se conseguindo, jamais, libertar de uma tutela que define e aponta orientações com base em critérios que, não raramente, colidem com o fundamental da cultura desportiva.
A invasão da Ucrânia, pela Rússia, veio agravar esta perigosa dependência do desporto em relação à política e aos políticos. A decisão das principais organizações desportivas mundiais de se associarem às sanções impostas ao regime do Kremlin, excluindo os atletas russos e bielorrussos das principais competições internacionais, não causou a mais pequena perplexidade e por isso também não provocou qualquer discussão significativa na família desportiva. De uma maneira geral, o chamado mundo desenvolvido entendeu como natural que o desporto, contra todas as suas convicções históricas, optasse por excluir em vez de incluir e assentasse essa decisão em critérios definidos pelo interesse político de uma das partes em confronto.
O assunto não gerou controvérsia porque parecia culturalmente aceitável que o desporto tomasse partido e figurasse na lista de opositores à invasão russa de um Estado soberano. As imagens que, entretanto, nos foram chegando a casa da destruição e da crueldade dos bombardeamentos russos a instalações civis ucranianas tornaram-se virais e ajudaram a gerar um sentimento antirrusso generalizado. A ideia de que o desporto não poderia ficar indiferente tornou-se, assim, consensual entre as pessoas de bem.
O problema é que ao colocarmos o desporto no âmbito das sanções geríveis pelo poder político, abrimos a caixa de Pandora. E agora que Israel reage à ação terrorista do Hamas com uma violência não raras vezes cruel e desumana, o desporto silencia-se e esconde-se. Tal como tem dificuldade em responder se as principais organizações desportivas mundiais, para manterem uma coerência na ação civilizacional, não deveriam também impor a exclusão de atletas de países que não respeitam os mais elementares direitos humanos ou o princípio da igualdade de género.
Eu sei que a generalidade das pessoas não gosta de ser importunada e muito menos perturbada com um tipo de reflexão que se afasta de uma estrutura de pensamento globalizado e massificado. Porém, como gosto, respeito e admiro a causa desportiva, não consigo deixar de pensar que o desporto só se fará regressar a um estatuto de dignidade, de integridade, de maturidade moral, quando voltar a ser autónomo, livre, responsável e zelar pela sua específica e tão sensível visão global do mundo, sabendo diferenciar regimes de povos, tornando-se, assim, numa espécie de religião laica, capaz de se aproximar dessa louvável visão do Papa Francisco que afirma que a igreja é para todos e ninguém dela deve ser excluído. Também deverá ser assim o desporto. O desporto, como afirmação de paz, de solidariedade entre os povos, de igualdade social, de inclusão, de convivência, não pode permitir-se a excluir, a segregar, a proibir o seu culto. Sob risco de se tornar vulgar e dispensável. Um mero entretenimento. Sem alma e sem grandeza."
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