sábado, 20 de janeiro de 2024

«No dia seguinte ninguém morreu»


"«O que extingue a vida e os seus sinais não é a morte, é o esquecimento» - José Saramago

«No dia seguinte ninguém morreu». Assim começa o romance Intermitências da Morte. O primeiro passo de mais um genial exercício de manipulação do absurdo por parte de José Saramago. E ao manipular o absurdo, confere-lhe o estatuto do verosímil, tal a consistência como o escalpeliza e sustenta, e leva-nos à conclusão de como a imortalidade física — o desejo mais antigo do ser humano — acabaria por se transformar no seu maior pesadelo.
Provada a tese, Saramago muda o exercício. Transforma a imortalidade em mortalidade com hora marcada. Com uma semana de antecedência, a Morte passa a enviar uma carta a cada pessoa a anunciar a sua chegada. De um exercício cruel, a Morte tira o deleite de observar as reações humanas. Sven-Goran Eriksson recebeu uma dessas cartas em forma de diagnóstico clínico: cancro no pâncreas. Incurável. Um ano de vida, revelou em entrevista na semana passada.
No livro The Didi Man, o ex-jogador alemão Dietmar Hamann conta um delicioso episódio vivido com Sven-Goran Eriksson no Manchester City. Em 2008, a equipa inglesa fez uma digressão de final de época à Tailândia. Final da época que tinha sido penoso, com uma derrota, 1-8, com o Middlesbrough, na última jornada. A dúvida não era se Eriksson iria sobreviver, mas quando iria ser despedido. Às 10 da manhã, no hotel onde a equipa se encontrava instalada, Eriksson aparece no hall com numa bandeja de prata, dois copos e uma garrafa de champanhe. Dietmar Hamann estranhou aquele comportamento em alguém que iria perder o emprego. E questionou Eriksson: «O que há para celebrar?» A resposta chega embrulhada com um piscar de olho e o característico sorriso malandro. «A vida, kaizer. Estou a celebrar vida…», enfatizou o também conhecido como James Bond sueco, irrepreensivelmente vestido de robe e calçando chinelos.
Desejo que Eriksson mantenha o sentido de humor, a rebeldia do bon vivant com que pautou a vida, e abra uma nova garrafa de champanhe para celebrar a vida. Com a convicção de que morrer é o oposto de nascer, não é o contrário de viver.
Receber a notícia da própria morte, com prazo de validade, é um dos momentos mais definidores do ser humano. Uma coisa é sabermos que morreremos um dia, outra radicalmente diferente é saber quando vamos morrer. E, se pensarmos bem, o que assusta mesmo não é tanto a ideia da morte mas o balanço que somos compelidos a fazer sobre a forma como temos vivido a nossa vida. Não existirá tormento maior na hora da despedida do que a convicção de que a vida vivida se pode resumir bem numa lápide a assinalar data de nascimento e de morte. Já o maior consolo é a consciência de uma vida preenchida de significado e com impacto nos outros, aqueles que vão garantir a nossa imortalidade.

Brinca, brinca Woody Allen...
Há quem sucumba à notícia da própria morte, morrendo por antecipação. Há quem procure recuperar o tempo perdido, corrigir os erros, rever as prioridades e viver finalmente. Felizes os que nada têm de mudar e podem exclamar como última palavra: vivi.
Mozart sabia que ia morrer quando escreveu aquela que é considerada uma das obras mais marcantes da história da música: Requiem em Ré Menor, chamado de Missa Pro Defunctis. O genial compositor compôs dez movimentos, mas já não conseguiu terminar a Lacrimosa, um sublime trecho musical. No qual Mozart se agarra às notas como quem se agarra à vida. Coube ao amigo Franz Xaver Sussmayr terminar a Lacrimosa. Com uma perfeição tal que ninguém diria não ter sido escrito por Mozart. Ser imortal é isso mesmo: inspirar pelo exemplo e pelo génio, garantir que os caminhos trilhados por outros sejam testemunhos dos nossos próprios passos.
Nos delírios do meu Livro do Desassossego, vejo à mesa o escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850). Interrompe o silêncio para proclamar: «O homem morre pela primeira vez quando perde o entusiasmo.» O russo Vladimir Mayakovsky (1893-1930), bebendo um shot de vodka, decide exclamar, solene: «Morrer é fácil. Viver é que é difícil.» A seu lado Woody Allen sorri com desdém e responde a Mayakovsky: «Não que eu esteja com medo de morrer. Eu só não queria estar lá quando isso acontecer.» Os outros riem e todos brindam. Mas o poeta persa Shaikh Muslih-al-Din Sadi (sec. XIII), temendo que a conversa se torne demasiado trivial, decide colocar ordem à mesa: «Quando morreres, só levarás aquilo que tiveres dado.» O suíço Jean Antoine Petit-Senn (1792-1870) aplaude. E complementa: «A morte despe-nos dos nossos bens para nos vestir das nossas obras.» Instala-se o silêncio. Todos acenam a cabeça em respeitoso cerimonial. Olhar a morte nos olhos é, afinal, olhar a vida de frente. O segredo passa por assumir a felicidade como uma viagem e não como destino.

Que maldade te fizeram, Lionel Messi!
Entregar a Lionel Messi o prémio The Best como melhor jogador de 2023 foi das maldades mais cruéis que se podiam fazer a… Lionel Messi. Os melhores, em cada área de atividade, são os que mais desenvolveram o sentido da exigência e os mais imunes quer à crítica injusta quer ao elogio fácil. O ataque mais eficaz à excelência não é a crítica injusta ou mal intencionada. É um elogio não merecido. A primeira gera a indignação dos justos, o segundo a gargalhada.
Messi sabe que não foi o melhor jogador do Mundo em 2023. Messi sabe que nós sabemos que ele não foi o melhor jogador do Mundo em 2023.
A segunda maldade deste The Best atribuído a Messi reside no facto de retirar brilho aos anteriores. Coloca-o ao nível de um concurso de popularidade e não do tributo à excelência. Tem efeitos retroativos nas discussões por vezes acesas sobre méritos e deméritos de anteriores eleições. Alimenta teorias conspirativas. Messi não merece nada disso.
Messi não esteve na cerimónia de entrega do The Best. Ninguém me tira da cabeça que não se quis sujeitar ao desconforto de segurar na mão um prémio que ele sabia que era de outro. Os melhores não toleram isso. E eu aplaudo.
Nos meus delírios de guionista de filmes épicos, o final perfeito desta história seria Messi no palco, de troféu na mão; chamava Haaland e entregava-lhe o prémio: «É teu.» E eu, na plateia, bateria palmas de pé. Ao abdicar do The Best assumia-se, naquele momento, como um… the best."

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