domingo, 21 de janeiro de 2024

Apesar de Di María, a paralisia do Benfica é real


"O argentino, cada vez mais um artista estaticista que confia na arte do seu pé esquerdo, marcou e assistiu na vitória (2-0) dos encarnados, mas, durante muito tempo, a equipa voltou a pressionar de forma desgarrada e a ser unidimensional a atacar. Marcos Leonardo, o reforço natalício, voltou a marcar

O abominável João das Neves vinha embalado na sua residência na equipa, é obra ter 19 anos e assentar a mistura de pulga elétrica sem a bola, a saltitar freneticamente enquanto não a recupera, com um lobo de dentes afiados para as segundas, terceiras e quartas bolas que houver para disputar, raça de futebolista que com o tempo se vai aprimorando no uso que depois dá às tais bolas para fazer andar as jogadas do Benfica. Eram oito partidas seguidas a titular no campeonato uma ida à seleção nesse período e elogios de Roberto Martínez à personalidade de graúdo do miúdo-maravilha, empurrado para o banco contra o Boavista por um pancada sofrida na coxa no jogo anterior.
Ou, em linguagem de rua, por uma paralítica.
Sem ele, o Benfica contou 45 minutos do mesmo género de paralisação que mostrara no resultado enganador frente ao Rio Ave, a equipa era repetente no seu quê de letargia mesclado com o quê de desorganização quando pretendia pressionar o Boavista e essa mistura, ao contrário da carregada por João Neves, a ver de fora com as mazelas da sua monoplegia como os companheiros replicaram comportamentos perante os adversários que vestem de xadrez e têm vivido, nos últimos tempos, dias com mais negrume do que brancura, escurecidos pelos salários em atraso e de um presidente que diz que estar dois meses sem receber “não mata ninguém”.
Salpicado pela qualidade de vários bons jogadores, o Boavista equilibrou muitas vezes o tempo contado com bola porque os encarnados, além de não apertarem por aí além o conforto dos defesas centrais a iniciarem as jogadas, montavam uma pressão desgarrada no meio-campo axadrezado. Uns eram rápidos a ‘chatear’ quem tinha a bola, outros só reagiam quando o adversário mais próximo recebia um passe, às vezes marcava-se com os olhos. A qualidade do capitão ‘Seba’ Pérez, no miolo, deixava as posses do Boavista respirarem, a rapidez de pés de Luís Santos, na esquerda, desatava algumas situações com a ajuda de Tiago Santos, o maior talento em bruto dos visitantes.
Esses vários bons futebolistas, porém, não eram ligados por um coletivo capaz de avançar com posse de bola organizada mais do que duas ou três vezes na metade do Benfica, que nos poucos momentos em que logrou compactar o seu bloco na primeira fase de pressão, lá forçou o desnível para com os adversários a sobressair. Arthur Cabral rematou rasteiro (20’) na ressaca de um mau passe de Salvador Agra, extremo adaptado a lateral direito. Depois, foi Di María a curvar uma tentativa (28’) para o guarda-redes João Gonçalves provar relva para defender. Quando não era passivo e desmontado a pressionar, o Benfica provocava desconforto.
Mas, com tantas alturas de quase cada um por si, a equipa que Roger Schmidt tem ferrugenta por comparação com a oleada versão da primeira metade da época passada sofria, ainda mais, porque, com bola, também sofreu com as suas falências. Sem profundidade alguma nas alas, onde Aursnes quer combinar e associar-se à direita com um Di María de bola no pé e Morato, à esquerda, pouco se aventura a atacar o espaço vagada pela atração de João Mário ao centro, o Benfica afinal jogava com diplegia - não tinha presença atacante nos flancos, mesmo que a melhor ocasião tenha saído do único cruzamento (12’) feito pelo improvisado lateral canhoto, que três jogadores foram incapazes de desviar.
Ultradependente dos passes que Kökçü descobrisse nos meandros de um Boavista que recolhia atrás e fechava as linhas ao centro, ciente de que o maior potencial de ameaça viria dali, por onde deambulava Rafa, o Benfica emperrou constantemente as suas tentativas atacantes. Com o tempo cedo a frustrar a equipa que tem ouvidos para absorverem a impaciência das bancadas, a segunda parte teve um par de contra-ataques perigosos do Boavista que exploraram a também esburacada reação à perda de bola dos anfitriões, que nem com Florentino eram sagazes a procurar esses roubos.
Trubin já se armara em salvador (54’) quando se esticou para negar um remate em esforço de Bozenik, única intervenção do guarda-redes que foi usada pelo Benfica para despertar. Ainda com Morato e Aursnes nas laterais, o brasileiro e o norueguês projetaram-se muito mais, pisaram mais vezes relva do último terço do meio-campo adversário e, à direita, a presença do careca multiusos permitiu desviar atenções para Di María respirar melhor para se o que hoje é: um jogador de lançamentos e execuções esteticistas, a confiar como nunca no pincel de pé esquerdo para produzir arte. Usufruindo de mais tempo, o argentino olhou para a área, aos 61’, com toda a calma disponível, e tirou um cruzamento cheio de efeito, à procura de Arthur Cabral.
A cabeça do brasileiro não chegou à bola que ressaltou no relvado e enganou o guarda-redes. O 1-0 entrou direto na baliza, nem muito intencional e muito menos inspirador, mas compensador de uma mudança de atitude que capacitou o Benfica para importunar o Boavista. O golo sacudiu o jogo, animou-o. Só que nem por isso o tornou confortável para quem ganhava.
Os axadrezados esticaram-se em campo e basearam a sua reação em subir a pressão para junto dos defesas adversários, mais ainda quando Aursnes pôde viver um pouco na sua posição e Tomás Araújo, à direita, completou o pleno de centrais na linha defensiva do Benfica. O encontro partiu-se, jogou-se mais aos repelões, o plano dos encarnados continuou a parecer que desconhecia quem era e a influência que ‘Seba’ Pérez tem no jogo do Boavista e Bozenik teve bolas de remate perto da área. Mais incapaz ainda de pressionar de forma coesa, a equipa de Roger Schmidt teve hora e meia sem saber o que é estabilidade.
No reboliço dos últimos 10 minutos, os encarnados aproveitaram a desordem de um adversário a apalpar no ar a insegurança, que se lançou com tudo para a frente sem pensar nas consequências, para tentar estucar o resultado. João Mário, Kökçü e Di María, todos viram a baliza de perto após recuperações de bola e remataram para João Gonçalves se arreliar. Só Marcos Leonardo, o reforço natalício, marcaria já nos descontos (90’+4) quando o olho de Otamendi lançou uma bola longa para Di María contra-atacar rapidamente e assistir o avançado. Além do segundo golo à segunda aparição em campo, o brasileiro deixou receções vistosas e sabedoria a servir de parede para tabelar com quem está virado para a baliza.
A vitória mantém o Benfica a ver a liderança do Sporting somente à distância de um ponto, essa é a bonança a retirar de um jogo castigador para a fina técnica que o Boavista tem em Tiago Morais e para a calma organizadora de Seba Pérez. O segundo fez suar os defesas após o primeiro beneficiar no meio da pressão e reação à perda atabalhoadas do Benfica, que segue paralisado nesses momentos do jogo onde não assim há tanto tempo aprisionava qualquer adversário."

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