"Gonçalo Ramos colocou os líderes do campeonato em vantagem aos 82’ e Petar Musa tranquilizou a Luz aos 90’+2. O Boavista não criou muito perigo, mas soube tapar os caminhos para a baliza de Rafael Bracali, que defendeu um penálti de João Mário. O Benfica melhorou com a entrada de David Neres ao intervalo
O futebol tem sempre qualquer coisa de nostalgia quando os heróis do jogo são os avançados. Belos eram aqueles dias, talvez pertençam à inocente juventude, em que os senhores da frente pareciam assassinos sem qualquer ponta de calor no corpo e de compreensão na alma. Insaciáveis bestas sanguinárias. O último toque, o que mordiscava as orelhas da glória, era a ação que vivia mais perto do céu. Andávamos todos menos obcecados com as táticas, babando apenas com as ações dos futebolistas, os únicos artistas deste desporto. Esta noite, no Estádio da Luz, Yusupha Njie foi admirável em quase tudo o que fez, sobretudo no golaço com a canhota, quem sabe honrando a memória do pai. A seguir, para desfazer o nó que já se atava na garganta dos benfiquistas, Gonçalo Ramos e Petar Musa meteram dois golos ao Boavista (3-1). Ou golaços, se admirarmos o ofício do 9, um outro termo para carrasco.
Roger Schmidt avisara na véspera: “[A Liga Portuguesa] é uma competição dura, com jogos muito difíceis. Vejo muitos bons treinadores, que preparam taticamente bem as equipas. Vejo qualidade individual, gosto desta competição, sendo honesto”. A Luz recebeu esta noite uma dessas belas jogatanas. É certo que demasiado tempo apenas o Benfica tentava ferir o rival, com o Boavista a garantir o bloqueio dos caminhos para a baliza de Rafael Bracali. Mas depois os axadrezados cresceram, tiveram alguns momentos com a bola a beijar as botas dos seus homens, mas nunca incomodaram verdadeiramente Odysseas Vlachodimos. Bruno Onyemaechi e Salvador Agra mostraram-se pela esquerda, eram os mais incómodos para a equipa que vai liderando o campeonato. Njie acabaria por começar a ganhar faltas e a aguentar a bola, dando oxigénio e tempo aos seus companheiros. A generosidade e utilidade do avançado foram muito satisfatórias.
Rafa falhou um golo logo na primeira jogada do jogo, no primeiro minuto, após passe errado da defesa. O Benfica, que vencera por 3-0 no Bessa na primeira volta, iniciou a um ritmo avassalador, com uma qualidade tremenda. Mordia forte e em todo o campo. O Boavista, de Petit, só procurava resistir. João Mário e Fredrik Aursnes, intensos com bola e solidários sem ela, tinham mais liberdade do que nunca para aparecer no meio ou no corredor oposto. Gilberto, de regresso, foi errático durante muito tempo, mas depois acabou por estar ligado aos momentos importantes que desbloquearam este candidato a clássico do futebol português.
Os lisboetas voltaram a estar perto do golo antes do intervalo. Aursnes tocou para João Mário. O médio encontrou Grimaldo e o espanhol meteu a bola na cabeça de Gonçalo Ramos. Bracali voltou a evitar alegrias desvairadas na Luz. Na recarga, Reggie Cannon tapou a inesgotável energia de Gonçalo Ramos. Zero-zero ao intervalo, num jogo em que o Boavista, apesar de difícil de superar, não rematou.
Por faltar virtuosismo e uma relação mais libidinosa com o risco, Schmidt lançou David Neres (saltou fora Florentino, menos essencial na forma como o jogo estava a decorrer). O Benfica entrou bem novamente e voltou a ser mais perigoso. Bastaram 40 segundos para Aursnes ameaçar os três postes defendidos por Bracali, com um remate de longe. A bola não passou assim tão longe. Os senhores que vieram de longe voltaram a mostrar-se desconfortáveis, embora organizados e competentes nos duelos. Chiquinho, o tal a quem os colegas comparam na brincadeira a Zinedine Zidane, era quem tinha a responsabilidade de ser paciente, começando as jogadas atrás e tentando descobrir espaços mais à frente.
O golo começou a soltar um fedor. São aquelas coisas que se dizem, não é?, “já cheira a golo”. Bracali voltou a cancelar a festa quando Neres apareceu isolado à sua frente. O passe de Rafa foi especial. O Boavista não existia quando Gilberto empurrou uma bola morta para dentro da baliza, aos 55’. Antes disso, Bracali voltou a negar o golo, desta vez à cabeça de Rafa, e o lateral brasileiro, a substituir o castigado Alexander Bah, completou a recarga.
Petit, um ex-jogador também importante naquela casa, colocou em campo imediatamente Kenji Gorré, que só precisou de dois minutos para sacar um belo cruzamento para o afinado pé esquerdo de Njie, 1-1. Os benfiquistas no estádio nem tiveram tempo de saborear a vantagem. Neres voltou a ameaçar, depois de mais um passe de Rafa. Acabada a jogada, o VAR chamou Hélder Malheiro para checkar uma suposta pisadela de Sasso no pé esquerdo de Rafa. O árbitro confirmou a sensação dos senhores na Cidade do Futebol e apitou para o castigo mais impiedoso que há. Mas João Mário fez o que nunca fizera: falhou. Ou, melhor, Rafael Bracali defendeu, tal como a ofensiva que chegaria dois segundos depois.
Mas os avançados têm noites em que aparecem para ferir de morte a resistência dos corajosos defesas. Gilberto, que foi falhando cada vez menos, encontrou Gonçalo Ramos na área. O avançado recebeu e fingiu o remate. Sasso ficou deitado, massacrado pela arte do engano alheia. O jovem empurrou então para a baliza com a biqueira, homenageando grandes avançados que os adeptos de futebol já lamberam com os olhos. São já 13 golos na Liga.
Mas o jogo continuava vivo. Petit ia mexendo para dotar a equipa de mais atrevimento. Tão alto como o golo tranquilizador, por Musa (que bela assistência de João Mário), os benfiquistas gritaram um corte do competente António Silva, que depois ganhou a falta porque os árbitros não resistem em proteger os defesas sempre. O miúdo, ciente do momento do jogo, celebrou a obra para a bancada.
João Neves voltou a entrar nos minutos finais, rendendo o muito aplaudido Chiquinho. Pouco antes do derradeiro apito, Vlachodimos fez a primeira defesa da noite. Outra vez, Njie. Foi o jogo dos avançados."