terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

O que queremos que seja o desporto em Portugal?


"Os últimos metros da corrida de scratch dos Europeus de pista, na Suíça, foram de aparente tranquilidade para Tata Martins. Ali sentada naquela bicicleta sem travões, juntava mais uma linha a um percurso que, aos 23 anos, a torna na mulher-história do nosso ciclismo. Horas depois da vitória incontestada da ribatejana, a seleção de futebol começava a viagem para a Nova Zelândia, onde disputará o play-off intercontinental para tentar estar, pela primeira vez, no Mundial feminino. Isto tudo na sequência do êxito de Francisca Veselko, campeã mundial júnior de surf, título logrado nos EUA.
Da Nova Zelândia aos EUA, com escala na Suíça, há mulheres portuguesas que desenham contos de glória, relatos de êxito que surgem pegados à bandeira portuguesa, a mesma que Tata Martins colocou aos ombros nas celebrações do campeonato da Europa. Mas de onde vêm estas mulheres?
Os sprints de Tata Martins, os tubos de Francisca Veselko ou as fintas dançantes de Kika Nazareth vêm de um país onde, no desporto como no resto da vida, ser mulher é estar no lado da desigualdade, é entrar em campo começando o jogo em desvantagem. O cenário traçado pelo relatório “All IN: Towards Balance gender in sport”, da União Europeia e do Conselho da Europa, evidencia como, em Portugal, as mulheres estão sub-representadas em cargos de direção de clubes e federações, na quantidade de treinadoras existente ou na frequência da prática desportiva, saltando à vista as dificuldades para, com a chegada à idade adulta, conciliar a vida profissional e pessoal com o exercício físico.
Tata Martins, a mulher viciada em ganhar medalhas, só o ano passado passou a ter um salário fixo; a maior parte das jogadoras de seleção que já está na Nova Zelândia competem na Liga BPI, campeonato marcado pelos baixos ordenados, a fraca qualidade dos relvados — muitos deles sintéticos — e as precárias condições de muitas das futebolistas. Uma jogadora portuguesa, em tempos campeã nacional, confidenciou-me, nos últimos dias, que teve de rumar a um campeonato de um país de Leste porque, por cá, as propostas que lhe apresentavam rondavam os €1.000 euros mensais, pagos em apenas 10 meses, porque quando a Liga parava não havia salário.
O Acordo Coletivo de Trabalho proposto poderá cometer o pecado da ambição excessiva e levará ainda a muita discussão, mas vem agitar este panorama, tal como as sugestões do relatório do grupo criado pelo Governo. Este documento testa a vontade do poder político para a criação de legislação que proteja as desportistas na gravidez, na remuneração, no acesso a cursos para treinar. O Governo, suportado por uma maioria absoluta parlamentar, saiu na fotografia da apresentação do relatório, mas, mais do que palavras vãs, é da concretização legislativa que depende parte da melhoria das condições das mulheres desportistas em Portugal.
Enquanto governantes fazem pomposas cerimónias de condecoração das atletas desprotegidas num país que as coloca em posição desigual, importa fazer perguntas: o que queremos que seja o desporto em Portugal? Como queremos que seja o desporto em Portugal?
O desporto pode ser território desigual, de racismo e machismo, de agressões a árbitros em jogos de crianças. Pode ser o espaço onde uma Kika, uma Tata ou uma Veselko conseguem triunfar apesar das condições que a rodeiam, transformando-se nas exceções dentro da regra que são as barreiras levantadas às mulheres que sonham com praticar desporto. Pode ser fonte de alegria esporádica, de orgulho patriótico que surge nos intervalos em que as praticantes não estão a lutar contra as adversidades do quotidiano.
Mas também poderia ser um espaço mais justo, mais saudável, menos agressivo. Poderia mostrar ao resto da sociedade que é possível as mulheres não partirem em desvantagem. Poderia atentar melhor à situação de 99% das pessoas que o querem praticar, sem se agarrar ao 1% que vale medalhas, distinções e cerimónias que colam quem precisa de atenção mediática a quem driblou a adversidade.
Sem um desporto mais igual, vermos uma mulher num pódio desenhado com a bandeira nacional continuará a ser fenómeno raro, produto do esforço e qualidade singular daquela pessoa e não de um ecossistema estruturado que favorece o florescimento do talento. Por cada Tata que sprinta para a vitória, há muitas que, por mais que pedalem, não conseguem escalar as montanhas contextuais que lhes são erguidas. Queremos que o desporto em Portugal derrube essas barreiras?"

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