domingo, 5 de novembro de 2023

Trituuuuura, Benfica! – Drible de Letra #3


"Para o fervoroso adepto do Benfica, surge uma pergunta: o que Rui Vitória, Bruno Lage, Nélson Veríssimo e Roger Schmidt têm em comum? Para além da evidente ligação de treinadores do clube da Luz, claro. Não é um enigma complexo, mas requer atenção: todos, perante o mínimo sinal de crise, foram eleitos os únicos culpados de um aparente desmoronar da equipa. É isso mesmo. O colapso (a expressão não é minha, é dos relatos que vieram a público) encarnado a estes “únicos culpados”.
A indagação emerge: seria o treinador o principal responsável pela gestão da equipa? Em teoria, sim. No entanto, é essencial analisar o contexto, tal como em qualquer situação laboral. É que nem sempre um treinador tem a matéria-prima que deseja para cumprir os objetivos para os quais foi contratado; nem sempre tem as condições ideais.
Numa analogia mais abrangente, o melhor médico, num hospital sem os recursos adequados, produziria resultados equivalentes ao de uma instituição de excelência? E quanto a um jornalista numa redação limitada? A verdade é que, por mais alta que seja a expectativa, nem sempre se triunfa. Mas o Benfica vive nessa esperança; espera encontrar o treinador mágico que – limpinho, limpinho- vai ganhar tudo. Campeonato, Taça de Portugal, Taça da Liga, Supertaça e Champions. Tudo. Todos os anos. Até que esse dia chegue, o mantra parece ser: tritura, Benfica!
Ao olharmos para trás, vemos que Vitória, Lage, Veríssimo (este menos) e Schmidt, foram glorificados enquanto ganharam, quais Deuses do Olimpo. Mas caíram em desgraça com os primeiros sinais de falha. Num estonteante abrir e fechar de olhos, os mensageiros da Luz apressam-se, em uníssono, a apontar as armas a um único responsável: o treinador. Culpado pela gestão do plantel; culpado pela política de contratações; culpado pela má comunicação; culpado pelas pedras da calçada.
Dir-me-ão: mas isso é o mundo do futebol. É?! Mais ou menos. Guardiola: levou seu tempo para conquistar a Champions pelo Manchester City (ainda teve uma final perdida frente ao Chelsea, no Dragão); e, nesse caminho, venceu todas as Premier League? Foi triturado na temporada em que o Liverpool se sagrou campeão? Facto – Don Pepe continua a ser o treinador dos citizens há sete anos! Sérgio Conceição, ganhou todos os títulos nacionais? E Rúben Amorim, após um 4.º lugar pelo Sporting, onde se encontra agora? Já no Benfica, o que aconteceu a Rui Vitória após aquela insólita temporada sem o título de campeão, tendo sido ele o único maestro a erguer o cobiçado Tetra no mundo encarnado? A sua sinfonia encontrou um final abrupto: foi exposto e triturado no grande teatro público e despedido. E quanto a Bruno Lage, após um compasso errado ao não revalidar o título por ele conquistado? A mesma trágica melodia: arrastado até à praça pública e destituído. Já Nélson Veríssimo, com todo o seu empenho, não conseguiu materializar o lendário “chegar, ver e vencer”. O seu final? Novamente, o implacável e impiedoso juízo popular e a subsequente demissão. Quanto a Schmidt, parece ter capturado a essência do ditado logo na época de estreia. No entanto, neste novo ato, encontra-se à sombra do líder, apenas três pontos atrás, mas sem a glória dos jogos da Champions. O enredo é evidente para todos. Voltemos, então, à questão inicial: o que Rui Vitória, Bruno Lage, Nélson Veríssimo e Roger Schmidt têm em comum? Pois.
Neste universo encarnado onde a regra é a impaciência, surge uma notável exceção: Jorge Jesus. Enquanto outros treinadores veem as portas fecharem-se ao primeiro erro, Jesus, mesmo após um período de três anos sem erguer o título, foi brindado com duas novas oportunidades, conquistando, de seguida, dois títulos consecutivos. Foi ainda resgatado num gesto eleitoralista de Luís Filipe Vieira para, segundo suas próprias palavras, ganhar… bola. Ostentando a distinção de ser o técnico que mais tempo esteve ao leme durante a era Vieira/Rui Costa – sete anos e meio -, Jesus reúne também mais vitórias (três títulos), mas, paradoxalmente, é aquele que mais vezes sentiu o amargo sabor da derrota (quatro campeonatos e mais um, parcialmente – finalizado por Nelson Veríssimo).
Surge, assim, uma intrigante interrogação: e se outros tivessem tido a mesma margem de manobra, com idêntica dose de compreensão e paciência? Tomemos como exemplo Rui Vitória: num espaço temporal de três épocas e meia, celebrou dois campeonatos e meio. Pelas contas, Rui Vitória é o melhor da era Vieira/Costa. Mesmo assim, numa época em que não triunfou e teve metade da sua equipe vendida, e sem os recursos que, por exemplo, foram concedidos a Schmidt, não teve margem para erros. Esta história ecoa os destinos de muitos outros. Se recuarmos ao início desta era, verificamos padrão semelhante: treinadores que, à mínima falha, foram rapidamente substituídos: Camacho (ficou em 2º lugar e saiu), Trapattoni (campeão nacional e saiu, alegando razões pessoais) Ronald Koeman, Fernando Santos (despedido na segunda época após um empate na primeira jornada). Camacho novamente – regresso de pouca duração por, segundo disse, não ter “condições para dar a volta à situação” -, Seguiu-se Fernando Chalana e Quique Flores, que também só ficou uma época. Enfim… E eis que chegou Jesus, milagreiro de todos os créditos e ainda mais alguns para gastar. Depois desta passagem de JJ, o Benfica parece ter entrado num ciclo mais rigoroso, com os técnicos sob um escrutínio mais intenso. Talvez pelo aumento do número de programas e mensageiros que muito contribuíram para a degradação do comentário “desportivo”.
Em 19 épocas sob a égide de Vieira/Costa, o saldo é de oito campeonatos conquistados. E, excluindo Jesus, nenhum outro treinador sobreviveu a uma temporada sem vitórias. O ambiente no Benfica parece ser de uma pressão exacerbada, calamitoso para quem não ganha, onde a praça pública desempenha um papel crucial nas decisões. Mas só para os treinadores, claro. Porque os dirigentes, esses, permanecem ilesos.
E, mesmo com a recente ascensão de Rui Costa à liderança – e perdoem-me se houver aqui um tónico de injustiça, pois Nelson Veríssimo poderia muito bem não ser escolha do sucessor de Luís Filipe Vieira e Roger Schmidt mantém-se no cargo…ainda – este padrão de exigência desmedida e escrutínio parece continuar.
É evidente que os treinadores têm as suas responsabilidades. Quem não? Já os mencionei. Guardiola, Conceição ou Amorim: todos eles têm a sua quota-parte nos insucessos das respetivas equipas. O Benfica, claro, não está bem e Schmidt tem, a meu ver, responsabilidades. Mas, será o técnico alemão o único culpado? A equipa encarnada parece algo perdida em campo, refletindo, diria eu, a postura do seu treinador. Critica jogadores em público; altera o sistema tático; tira Florentino, volta a colocar Florentino; os reforços não têm rendido. Isso é inegável. Mas as vendas e contratações serão apenas culpa do treinador? Rúben Amorim, por exemplo, foi dos poucos a conseguir pôr o dedo na ferida e assumir que Varandas lhe faltou à promessa de não vender Matheus Nunes. Resultado? Quarto lugar no campeonato. Amorim teve culpas? Teve. Foi o único culpado? Não me parece sequer que tenha sido o principal. Foi triturado em praça pública? Não. O Benfica vendeu muito (e bem?), jogadores-chave; contratou muito, gastou bastante, a fasquia foi colocada ao nível da Champions (onde conta zero vitórias e zero golos), dá-se ao luxo de colocar 60 milhões no banco.
É verdade, os treinadores, com certeza, carregam nos ombros o peso das responsabilidades, mas serão eles os únicos protagonistas nesta trama? O momento que o Benfica vive convida-nos a uma viagem introspetiva pelos corredores ocultos destas quase duas décadas. E, nas sombras desses corredores, ergue-se a pergunta que não quer calar: de quem é, verdadeiramente, a culpa?"

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