domingo, 12 de novembro de 2023

El Torito – destroçaram-lhe o fígado mas não lhe dobraram a coragem


"Waldino Aguirre foi um dos grandes jogadores argentinos do seu tempo mas apegou-se demais à liberdade

Em meados de 1952 Waldino Aguirre era um dos mais famosos bêbados da cidade de Rosário, na região de Santa Fé, na Argentina. Despedira-se dos sonhos, tornara-se num incréu, fascinava-se com o universo que encontrava no fundo de uma garrafa de whisky. Cinco anos antes estivera no topo do futebol argentino: por 50 mil pesos fora transferido do Rosário Central para o Racing Club. Dinheiro a rodos. Mas já era infeliz como uma milonga de Piazzola. Um fantasma do que fora. Ficou por uns meses, marcou meia dúzia de golos, foi despachado para o Huracán. Na sua cabeça os monstros escondiam-se a cada canto. Prisioneiro de si próprio. Tinha um admirador especial: Ernesto Guevara de la Serna. O Che. O mesmo Che que descreveu nas suas memórias a forma como Aguirre, defrontando o Boca Juniors, fez a bola passar por sobre a cabeça do defesa De Zorzi e repetiu o movimento frente ao outro central, Marante, para concluir o lance mágico com um sobrerito ao guarda-redes Vacca. “Jode-te Torito! Qué golazo!”, escreveu Ernesto. Estavam ainda ambos vivos. Muito vivos. Detestavam as ditaduras dos militares, estavam dispostos a morrer lutando contra elas. Foi isso que o Destino lhes ditou.
Em Rosário, de joelhos destruídos, Aguirre era uma amostra de homem, procurando no meio do lixo algo que lhe matasse a fome. Todo o dinheiro que lhe surgisse nas mãos por conta da pedinchice era gasto em álcool. E não, não tinha vergonha. Quem olhava de frente para ele reconhecia-lhe na chispa dos olhos: Torito. O Torito que entrava bufando em campo investindo contra as defesas adversárias como se todas elas estivessem cobertas por capas vermelhas. A fúria cegava-o. E, em seguida, a cada gesto de límpida lucidez, fazia o que fez um dia a Musimessi, o guarda-redes do Newell’s Old Boys que, depois de ter sofrido um golo ao ângulo superior esquerdo projetado por um pontapé-de-moinho tão repentino como veloz, se dirigiu ao fotógrafos suplicando: “Digam-me por onde a bola entrou! Não a vi sequer partir. Digam-me por onde entrou!”.
No dia 27 de outubro de 1977, um grupo de polícias da Seleccional 11.ª entrou de rompante pela porta da casa miserável do Barrio Tablada onde vivia Waldino Aguirre. Encontraram-no deitado de borco sobre o seu próprio vomitado. Era um destroço. Foi acusado de estar implicado no sequestro de uma mulher e levado, à força de algemas, para a esquadra mais próxima. El Torito não fazia ideia daquilo que estava a acontecer-lhe. Sentia o frio do ferro nos pulso, ouvia vozes alteradas, não fazia sequer um esforço para não se deixar cair num estado de profunda prostração.
O culpado veio em defesa de Aguirre. Era um ex-prisoneiro que procurava vingar-se do homem que o tinha levado ao cárcere. Torito limitara-se a indicar-lhe onde vivia o mamífero mas a polícia infeta do regime não quis nem saber. Dois animais fardados em fúria levaram-no para o pátio do comissariado. Meio grogue por via das ressacas contínuas, Waldino nem entendeu bem o que se passava. Estava como o guarda-redes Musimessi no dia em que o tinha batido com aquele remate acrobático. Ainda murmurou “Qué pasa?” antes de um punho férreo lhe acertar na boca, lhe desfazer os lábios e partir-lhe três dentes. Foi aí que o cérebro de Torito começou a funcionar. Chegara a hora de pagar todas as desfeitas que, com as suas frases assassinas, proferidas no tempo em que era uma estrela que cintilava inquieta sobre os relvados, tinha atingido o coração do regime. Logo em seguida perdeu a audição – um taco de basebol acertou-lhe numa têmpora. Era um tipo duro, embora enfermado pelo álcool: durante cerca de quatro horas foi brutalmente espancado pelos capangas que havia jurado levá-lo até à morte. Muito convenientemente, um médico comprometido assinou a sua certidão de óbito: ataque cardíaco. Uns anos depois, uma nova autópsia veio a repor a verdade dos factos: o fígado de Waldino tinha sido rebentado pelas pancadas infligidas e os rins também ficaram inutilizados. O sol ainda não tinha nascido no dia 28 de outubro de 1977. A Justiça viria, com os anos, infalível, cair sobre os assassinos Ovidio Miguel Acevedo e Maximiliano Cándido Basualdo. Em sua defesa disseram apenas: “Limitámo-nos a espancar um bêbado miserável que sujava as ruas da cidade…”"

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