terça-feira, 14 de novembro de 2023

A chama imensa de João Neves dá um dérbi de loucos ao Benfica


"O Sporting chegou aos descontos a vencer, mas o algarvio das pilhas intermináveis empatou aos 94' e, aos 97', o herói improvável Tengstedt fez o 2-1. Gyökeres deu vantagem aos leões em cima do descanso, mas a equipa de Amorim, a jogar com 10 desde os 51', sucumbiu na parte final

O minuto 90 chegou com a Luz à beira de um ataque de nervos. O momento do Benfica levava o público a estar desconfiando e, depois de 40 minutos com mais um, a equipa de Roger Schmidt não conseguia o empate. Só aos 77' os locais remataram pela primeira vez à baliza, as substituições eram assobiadas, havia um cheiro a crise iminente no ar.
Mas, entre as dúvidas das águias e a resistência do Sporting, um algarvio de 19 anos não parava de correr. Ia a todos os duelos, caía, levanta-se, roubava bolas, empurrava a equipa para a frente, sempre de língua no canto da boca, um adolescente com energia interminável e pés de craque. Era João Neves, o menino que, quando a coisa aperta, agarra no coletivo, o conecta com a energia das bancadas e não deixa que a chama se apague na Luz.
Depois de mais uma partida de resistência e talento, a bola foi parar, aos 94', ao peito de João Neves, após desvio de Morato. Receção perfeita, remate entre uma multidão de corpos, 1-1. A celebração foi coerente com o jogar do português: uma explosão de energia, uma sucessão de movimentos. Deslizou de joelhos, gritou para os adeptos, dedicou o momento a alguém da bancada, mil celebrações numa, como ali há vários jogadores num só.
Parecia que o dérbi ficaria por ali. Mas esta história que começou em 1907 e teve hoje o seu 317.º capítulo continua a surpreender-nos. Não é por acaso que é o dérbi eterno.
Ainda havia tempo para mais um ataque do Benfica. Cruzamento da direita de Aursnes, remate de Tengstedt, bola no fundo da baliza de Adán. A Luz explodiu, mas o grito de golo foi interrompido pelo levantar da bandeira do assistente.
Lisboa, naqueles instantes, ficou em suspenso. Sair à rua naquele momento era ouvir o silêncio, sentir a respiração em pausa. Artur Soares Dias ouviu as indicações do VAR e apontou para o centro do campo. O delírio chegou ao estádio, jogadores abraçados, público no relvado. Lembram-se da pré-crise que se sentia no ar há cinco minutos? Isso foi há mil e uma emoções, os cinco minutos que mais estados emocionais diferentes provocaram dos dois lados da Segunda Circular.
Até àqueles descontos, o Sporting soube gerir a vantagem conseguida em cima do intervalo. Há um panzer em forma de jogador de futebol em Viktor Gyökeres e é essa a grande explicação para os leões terem estado quase a vencer o dérbi.
Aos 51', a expulsão de Gonçalo Inácio complicou as coisas para a equipa de Amorim, mas, até aos tais descontos, nunca houve um verdadeiro sufoco aos visitantes, Adán nunca esteve cercado. Mas a chama imensa de João Neves é difícil de apagar.
A grande incógnita antes do começo do desafio era saber se Schmidt colocaria uma linha de quatro ou de três atrás. Amorim apostou que haveria quarteto defensivo, o alemão escondeu o jogo. Pois bem, o que aconteceu foi uma primeira finta do técnico do Benfica: entrou com Otamendi, António Silva e Morato, mas fê-lo regressando à estrutura habitual. Os mesmos nomes, disposição diferente, com o canhoto brasileiro a lateral-esquerdo e Aursnes na direita.
A maior virtude da alteração foi devolver João Neves ao meio-campo. O algarvio, no coração do jogo, foi o primeiro a empurrar as águias para a frente, trazendo o público da Luz para o jogo, um misto de técnica e entusiasmo, precisão e agressividade, qual alma do Seixal numa missão de resgate, tarefa concluída quando a derrota parecia certa.
Liderado pelo mais novo em campo, o Benfica entrou por cima. Rafa foi o primeiro a criar perigo, mas aos 9’, após lance confuso, a bola passou perto do poste esquerdo e, aos 12’, um remate em arco a partir da esquerda, qual homenagem às pinturas que Simão Sabrosa realizava vestido de encarnado, foi beijar a barra. Aos 24’, Florentino não conseguiu cabecear após assistência de João Mário e aí terminou o melhor período dos locais, que só mais de 50 minutos depois voltariam a criar perigo.
Do lado do Sporting, a aposta era a do costume. Começar a jogar a partir dos centrais, atrair a pressão, ganhar espaços para os duelos na frente. Aos 30’, após canto de Pote, Diomande cabeceou para defesa de Trubin, na primeira oportunidade dos visitantes no dérbi.
O perigo que os verde e brancos não tiveram na primeira meia-hora surgiu, sobretudo, quando Marcus Edwards pegou na varinha mágica que as suas botas têm. O inglês pode só aparecer a espaços, mas maximiza as suas intervenções nos encontros, evidenciando o seu talento, conduzindo, fintando, ludibriando adversários. Aos 33’, levantou a bola para Pote, que permitiu a defesa de Trubin, e em cima do descanso foi protagonista no lance que deu vantagem aos leões.
Após recuperação de Esgaio, Edwards promoveu um duelo com Morato. O inglês fez a bola desaparecer e, depois, voltar a aparecer, um truque de magia para superar o defesa. Na sequência do lance, serviu Gyökeres. Uma associação entre Marcus e Viktor será sempre um encontro de mundos antagónicos, a leveza do britânico e o poderio do nórdico, o artista irregular e o tanque sempre agressivo.
Quando a bola chegou ao sueco, seria difícil imaginar um golo. Estava deslocado para a direita, com oposição próxima e a baliza não propriamente ali perto. Mas Gyökeres disparou um míssil que explodiu nas mãos de Trubin, bateu no poste e entrou. O dérbi podia ter tons igualados ao descanso, mas o contexto pouco importa a Viktor, que às vezes parece condenado pelos deuses da mitologia viking a arrancar uma e outra vez, a não parar nunca, um avançado a quem lançaram um qualquer feitiço.
A segunda parte começou com a expulsão de Gonçalo Inácio, que viu o segundo amarelo aos 51'. Como habitual quando está em inferioridade numérica, Rúben Amorim tirou Edwards, lançando St. Juste e repondo a linha de cinco atrás. E, durante largos minutos, o Sporting defendeu-se com segurança e o Benfica não mostrava argumentos.
Schmidt lançou Arthur e Tengstedt, mas as suas escolhas eram assobiadas pela Luz. Durante mais de 50', os campeões nacionais não criaram perigo, até que Di María forçou Adán a excelente defesa.
A pré-crise estava quase a tornar-se crise. Rúben Amorim estava quase a tornar-se no primeiro treinador da história do Sporting a vencer duas vezes na Luz e os leões estavam quase a ter seis pontos de vantagem para Benfica e FC Porto à 11.ª jornada, a maior margem de sempre para o emblema de Alvalade.
Mas João Neves nunca desistiu. Fez um pacto com a mística do Benfica, chamou a energia das bancadas da Luz para o campo, empurrou a equipa para a frente, empatou. Depois, Tengstedt escreveu mais um capítulo para o eterno livro dos heróis improváveis. Passados 317 jogos e 116 anos do primeiro Benfica-Sporting, o dérbi continua a ter desfechos impensáveis."

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