domingo, 8 de outubro de 2023

O diferente que é o râguebi


"A comparação de modalidades desportivas é um beco onde gostamos de nos engalfinhar, louvamos a qualidade daquele, em desprimor da faceta que desprezamos daqueloutro, o exercício é frequente se bem que inconsequente por não haver saída conclusiva, mas colocamos a touca e mergulhamos de cabeça nessa encruzilhada da qual nos condenamos a não sair pois não há conclusão possível além de constatar que tanto são as pessoas que fazem a dita modalidade, como o que praticam também as faz a elas, até um certo ponto. Ninguém sabe ao certo por onde andará o meio que guarda a virtude, mas, por estes dias, colocar o futebol diante do râguebi tem sido uma prática repetida.
No domingo, um cidadão francês viu um português a exaltar-se com gestos bruscos e impropérios audíveis e saiu do seu lugar no estádio Geoffroy-Guichard para lhe perguntar, em jeito de lembrete, se ele era adepto de futebol ou de râguebi. O jogo em Saint-Étienne, terceiro de Portugal no Mundial da modalidade comummente tida como cavalheiresca nos praticantes apesar de criada para vândalos, teve Portugal a superar a Austrália em vários períodos, apesar de ter perdido e a interpelação do incógnito indivíduo a quem fervia um pouco para lá do que é torcer no controlo das suas estribeiras veio, precisamente, do lugar clichezado onde contrapomos distintas formas de praticar desporto.
É engraçado constatar que o mais usual é apropriarmo-nos de cada modalidade como sendo ‘o’ desporto. Não dizemos “a minha modalidade preferida”, ouvimos muito mais “o meu desporto favorito”. É sintomático do nosso tribalismo enquanto humanos e do quão sedutora é a sensação de pertença a algo de que gostamos e de que muita gente gosta de mesma ou parecida forma. Depois é que vem a teima em comparar, porque do outro lado da analogia aos gentlemen está a segunda parte da lenga-lenga que cita o futebol como algo criado senhorialmente e jogado por feios, porcos e maus. Depois, para lá desse nevoeiro dos lugares-comuns, é possível constatar que não são necessariamente pessoas diferentes a praticar modalidades diferentes, mas as mesmas pessoas a mudarem consoante o meio onde estão.
Se assim o é, então por que o fazem?
Os árbitros no râguebi não são alquimistas de uma qualquer poção bebida pelos jogadores que os impeça de gritar, insultar ou barafustar contra decisões tomadas pelo dono do apito. Ninguém aponta uma arma para eles, matulões apetrechados de tanto músculo, cordialmente se cumprimentarem no final e os vencedores aplaudirem os vencidos. Tão pouco alguém terá obrigado os vários jogadores portugueses que junto ao relvado varreram as bancadas do estádio após o jogo a cumprimentarem adeptos e tirarem fotografias. Muito menos há uma diretiva decretada para adeptos de países ou equipas contrárias se misturarem amigavelmente, como as dezenas de portugueses nos arrabaldes do Geoffroy-Guichard que tocavam trombone, cantavam e se divertiam em comunhão com australianos depois de serem derrotados no campo.
Cada prática tem os seus hábitos e a sua maneira de esculpir pessoas mediante os valores que apregoa, no râguebi impera uma cultura de respeito na qual a autoridade é acatada apesar de desacordos ou erros, o que é diferente de uma decisão ser aceite consoante o lado para onde a virmos soprar. O que o árbitro diz e explica é ouvido por toda a gente num estádio do Mundial de râguebi (ou da ‘Champions’ da modalidade, do torneio das Seis Nações ou do Super Rugby, por exemplo) porque essa cultura existe de dentro para fora e de cima até baixo, até eu, que mal o joguei e joguei-o mal na adolescência sem mordomias tecnológicas em Portugal, que faz maravilhas com o seu contexto amador, vivi como isso está entranhado na oval.
E em Saint-Étienne vi como o que seria belo em qualquer modalidade é embelezado ainda mais pelo râguebi, onde a seleção com metade do seu 15 feito de jogadores amadores, vinda de um país nem com cinco mil federados, marcou dois ensaios (e outros dois anulados) à nação com dois Campeonatos do Mundo ganhos, entre as quais se vaticinavam diferenças maiores do que o 34-14 sugere. O que distinguiu Portugal da Austrália foram mais erros em tomadas de decisões em momentos estratégicos do que a carência de meios e o, por vezes, êxtase nas bancadas onde diferentes cores de camisolas se misturam sem celeumas aperaltou ainda mais o evento.
O râguebi não é imune a defeitos, tem bastantes, todas as modalidades os têm, mas conviver tão bem com a diferença no que toca às suas formas mais basais - a cordialidade entre jogadores e árbitros, o poder escutar-se as razões atrás de uma decisão, o facto de ‘armários’ humanos tanto se respeitarem no campo onde reside tanta força bruta - distingue a modalidade nos pontos que muitas outras chocam. Não imagino, em Portugal, adeptos de um clube grande derrotado na casa do rival a divertirem-se à porta do recinto, muito menos que os adeptos da equipa vitoriosa levassem a festa a bem, nem que algo tão basilar com vender álcool no estádio e deixá-lo ser bebido nas bancadas fosse permitido, mas, ups, eis a tentação de comparar.
Mas, de entre todas as pessoas que vão a França apoiar a seleção nacional e outras equipas de países onde o râguebi não é a modalidade mais popular, será que se comportam no futebol com o mesmo respeito e contrição saudáveis que evidenciam durante um jogo de râguebi? Se assim não for, então quais são as razões? Onde está a diferença?"

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