"X jogos, Y golos, Z assistências, 2345 minutos - a cada grande plano num jogo de futebol entre cromos de álbuns menos populares, o comentador debita-nos números avulsos, sem termo de comparação, sem relevância analítica.
Chamam-lhe “estatísticas” e servem de impactante cartão de visita aos especialistas, sublimando o longo caminho feito por gerações anteriores de tentar oferecer ao espectador do futebol uma melhor compreensão do jogo, na linha do que já se fazia nas outras modalidades, do atletismo ao voleibol, cujos pioneiros eram sábios mestres da pesquisa e da demonstração.
Mas o que antes pretendia ser uma adenda de conhecimento e análise tornou-se ultimamente numa insuportável cacofonia numérica, mais algarismos e menos algoritmo, a sugerir a mudança de canal ou o recurso à banda sonora de Artur Jorge.
Os media portugueses foram dos últimos a chegar às estatísticas do futebol, a que não foi alheia a dificuldade crónica dos nossos jovens perante as matemáticas aplicadas, vulgo iliteracia, relativamente ao papão Mathema - diziam os gregos, “aprender, entender, saber, explicar”.
Dos anos 40 aos 80 do século passado da criação e expansão da imprensa futebolística, apenas um visionário se socorria das estatísticas do jogo nas suas crónicas (na Stadium): Domingos Lança Moreira, injustamente marginalizado na história do jornalismo desportivo.
A geração de A Bola e do Mundo Desportivo era mais dada à escrita, às grandes tiradas eloquentes do que propriamente à chatice da análise: os jogos morriam aos 90 minutos e passavam à história pela verve de Carlos Pinhão ou Alfredo Farinha.
Uma crónica valia por mil tabuadas, um “Hoje jogo eu” chumbado a quente impressionava como uma fotografia de alta definição cromática.
A única contagem estatística que se registava nessa altura era a dos golos, por causa do prémio “A Bola de Prata”, mas que passava a zeros e sem acumulado a cada mês de agosto. Sei bem o trabalho que tive para finalizar as contas de Peyroteo e de Eusébio, que eram os mais fáceis.
Com a difusão dos jogos internacionais na RTP, começaram a ser apresentados os jogadores estrangeiros pelos dados acessíveis nos anuários do Rothmans, do Guerin Sportivo, da Don Balon, da France Football ou da Kicker. Toneladas de papel, milhares de escudos nas tabacarias da Baixa ou em assinaturas anuais, e muita pestana queimada para quem quisesse saber de futebol internacional, conhecer os jogadores, as equipas, o desenho dos emblemas ou as cores dos equipamentos, as tendências, as inovações, compreender tácticas e estratégias sem ver o jogo.
Fazia-me impressão ouvir descrever o peso, a altura, o número de jogos e golos, o currículo dos jogadores estrangeiros, em contraponto com uma apresentação árida e despersonalizada dos portugueses. Havia um claro défice de informação disponível pois o primeiro assomo de anuário, os míticos Cadernos de A Bola, apenas difundia a informação básica das fichas federativas, praticamente sem conteúdo desportivo.
Por isso, decidi aproveitar o meu primeiro desemprego, depois do crime da extinção da ANOP, para me embrenhar na Hemeroteca Municipal durante sete meses e escalpelizar ficha a ficha, perceber quem era quem entre nomes, alcunhas, equipas só com dez e todo o tipo de imprecisões do tempo do jornalismo amador.
Graças a isso, a revista Foot foi a primeira publicação nacional a publicar no começo da época o currículo em jogos e golos de cada jogador, ainda na idade do papel, antes da invenção do Works, do avanço do Excel e da maravilha do Numbers - uma informação que me acompanhou, nas décadas seguintes na Gazeta do Desportos, no Semanário Desportivo, no Expresso, no Record, na TSF e na TVI, até se tornar obsoleta e cancelável na era digital.
Com a tv por satélite, pirateando a Sky Sports e o Canal Plus, e com as reportagens nos Estados Unidos, a descoberta do Elias Sports Bureau que contabiliza o desporto há 110 anos, contactando as suas complexas “statsheets”, e finalmente com o advento dos jogos eletrónicos e das “Fantasy Leagues”, aprendi que o negócio das estatísticas desportivas tem dois momentos:
- a ”compra” do máximo de informação, como mineração de kilobytes do infinito filão dos pontapés na bola;
- e a “venda” do diamante cuidadosamente delapidado, valioso, surpreendente e memorável.
O mesmo número pode parecer pechisbeque hoje e valer como jóia preciosa amanhã.
É incomparavelmente mais interessante saber que determinado jogador raramente faz os 90 minutos, que o seu tempo de jogo tem alguma relação com os resultados positivos ou negativos da equipa, que joga menos ou mais com o atual ou o anterior treinador - do que ouvir a seco e sem enquadramento a enumeração do acumulado esdrúxulo da sua ficha de minutos, sem perceber se é muito ou pouco, relevante ou irrelevante, num contexto com mais de 22 jogadores.
O Zero-zero, o Transfermarkt e o Sofascore são os Rothmans da era digital e facilitam ao máximo a vida dos analistas, aos quais só falta agora perderem algum tempo a analisar: a fazer o trabalho de casa, como se dizia no meu tempo.
Era o que fazia, na BBC, o comentador John Motson, falecido este ano depois de ter falhado uma tentativa de salvar o “obsoleto” e descartável Rothmans Yearbook, a sua “cartilha” profissional ao longo de 40 anos e mais de dois mil jogos na televisão e na rádio, incluindo 29 finais da Taça de Inglaterra.
Por exemplo, eu gostava de ter sabido na hora, que Abel Ruiz tinha um rácio baixo (agora 13/19) de penaltis transformados, não marca um golo de penálti há mais de três anos e desperdiçou o único tentado com a camisola do Sporting de Braga. E que, pelo contrário, o guarda-redes inglês Trafford apresentava uma taxa elevadíssima de defesa de grandes penalidades (agora 4/8).
Demorei 20 segundos a obter estas estatísticas e assim entendi melhor a tensão insegura que o avançado espanhol exteriorizava nos momentos que antecederam o seu falhanço histórico na final de sábado."
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