quinta-feira, 1 de junho de 2023

O tango assassino de Boedo


"A gente de Boedo benzia-se na missa, de manhã, porque sabia que, à tarde, ia assistir a mais uma execução de Los Matadores

Nessa tarde amena de Primavera de 1966 nem uma brisa bulia com as árvores do Barrio de Boedo, em Buenos Aires, o local onde Julio de Caro deu ao tango um novo caminho para percorrer na sua história tão presa à própria história do bairro e da cidade. As opiniões começaram por dividir-se. Depois até os mais conservadores abriram finalmente os braços à musicalidade de Julio. Souberam decorar e cantar com lágrimas nos olhos:
«De aquí, de Boedo y San Juan
voy a cantar
un tango triste y sentido...
Porque quiero saludar y recordar
el barrio donde he nacido...
Dónde quedó la emoción
de mi niñez
con cielo azul de rayuelas...».
Nada podia ser mais bairrista. Nessa tal tarde de que falo já Julio de Caro entrara para a ala dos mestres. Nessa tarde abúlica de 1966, com o peito enfunado do orgulho próprio das gentes de Boedo, três rapazes entraram pelos portões de El Gasómetro, o estádio do San Lorenzo, com a absoluta convicção de que iriam fazer parte da história do futebol argentino.
O Clube Atlético de San Lorenzo foi fundado a 1 de abril de 1908 no bairro de Almagro graças à força de vontade de um grupo de garotos salesianos comandados pelo padre Lorenzo Massa. Depois as regras da urbanização de Buenos Aires encaixaram Almagro no Barrio de Boedo e o clube foi expulso por via da construção civil desenfreada e teve de se albergar em Bajo Flores. Seria inevitável que voltasse a casa. Voltou. El Nuevo Gasómetro ergueu-se no local do antigo. Os rapazes que sonhavam em vestir a camisa - era camisa mesmo, com botões e tudo - do San Lorenzo chamavam-se Antonio Rosl, Carlos Buttice e Agustín Iruja. Cumpriram o sonho. Mas aquilo com que nunca haviam sonhado foi, dois anos mais tarde, ainda maior do que o próprio sonho: fizeram parte de Los Matadores, a primeira equipa campeã da Argentina sem perder um único jogo. O tango triste de que falava Julio passou a ser um tango pleno de alegria. Era bailado de pé para pé com uma bola pelo meio e desesperava adversários porque bola há só uma e eles nunca a tinham. O tango do San Lorenzo de Almagro não se aprendia de cor porque a imaginação profícua de gente como Rodolfo Fisher, El Tucumano, trocava de nota a qualquer momento sem nunca desafinar. E, lá de trás, do centro da defesa, ouvia-se o grito poderoso de Rafael Albrecht que fazia parelha com o veterano da equipa Oscar Calics. Cada berro era um incentivo. Quando Rafael abria as goelas uma rajada de impropérios saía a par de um bafo assustador até para os próprios companheiros de equipa. Ah! Não, ninguém se metia na frente de Albrecht que não fosse, no final do jogo, a correr com urgência para ser atendido por um otorrino. Eram berros homéricos! Berros capazes de levantar uma ventania desatada mesmo quando as tardes eram tão calmas como aquela tarde de verão de 1966 no Barrio de Boedo.
Carlos Buttice foi o guarda-redes dessa equipa do San Lorenzo e explicou o êxito da forma mais simples que lhe veio à cabeça: «El grupo no tenía fisuras». Pois, nem uma brecha se abria enquanto iam atropelando adversários como o River Plate, o Banfield, o Huracán e os Estudiantes de La Plata. O golo corria como sangue pelas veias de avançados revoltados, furiosos, inquietos: Fisher, Carlos Viejo, Hector Vieira, Alberto Rendo ou Pedro Alexis Gonzalez. Se o tango de Julio de Caro entremeava a tristeza com a rebeldia, o futebol de El Ciclón tornava-se cada vez mais imparável à medida que ia destruindo opositores apavorados como se fossem perseguidos por uma manada de hipopótamos. Mas hipopótamos como o da velhinha história em que saltavam de nenúfar em nenúfar. El Ciclón atropelava quem lhe surgisse pela frente mas não o fazia com brutalidade, fazia-o com a elegância cavalheiresca que provinha do talento ímpar dos seus jogadores. E provava ao mesmo tempo como era possível ser-se homicida sem piedade e executor sóbrio de uma estratégia que exigia tanto da agilidade como da inteligência.
«Barriletes de color
ilusiones de papel
que ya el viento se llevó!...
Todo aquello
¿dónde está
esquinitas de mi ayer
de aquí, de Boedo y San Juan?»
cantavam os homens dos tangos e das milongas enquanto enlaçados os pares bailavam no enlevo erótico de uma sensação íntima. Los Matadores iam de cancha em cancha cumprindo o seu destino de matar todas as equipas que lhes surgissem pela frente. Os três sonhadores daquela tarde de Verão na qual o vento não soprava sequer a mais leve das brisas tornaram-se tão sanguinários como os seus companheiros. Tango assassino. Talvez fosse a melhor forma de descrever a fatalidade dos seus golpes. Roberto Telch tinha a missão de marcar o ritmo mortífero. As gentes de Boedo sonhava com os domingos. Benzia-se na missa, bem cedo, porque sabia que ia em grupo assistir a uma execução. E que a vítima era o mais inocente possível..."

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