"Título no bolso, olhos postos na próxima época e no que pode oferecer mais o Benfica de Roger Schmidt além do bom futebol.
Pelo caminho foram-se levantando questões várias, nunca determinantes ou que obrigassem a mudança de planos, mas no cômputo geral é aceitável pedir mais ao técnico alemão: é essa a principal sensação de 2022-23, que o palmarés correspondente não faz jus ao soalheiro futebol demonstrado em variadíssimas fases.
E como o Benfica foi continuamente primeiro na Liga e caminhou sobre papoilas em contexto internacional, os momentos que aqui decidimos assinalar foram as pausas publicitárias dum bonito filme. O fulgor da fantasia cinematográfica foi sabiamente interrompido por chamadas de atenção que fizeram perceber quais as reais fragilidades deste Benfica, que ainda é apenas o primeiro Benfica de Roger Schmidt. E com contrato até 2026, é tentador imaginar o potencial de crescimento da equipa.
1.
Paragem forçada em Guimarães – No Castelo fez-se luz: um clarão instantâneo que encadeou o Benfica que corria para o recorde de Eriksson (15 vitórias nos primeiros 15 jogos oficiais) e precipitou a longa reflexão sobre as paragens internacionais.
As duas semanas anteriores tinham sido passadas em jogos de selecção, com as últimas convocatórias antes do Mundial – e no plantel encarnado muitos eram os pretendentes a bilhete para o Catar, como se viu depois.
Assim, o Benfica que chegava ao berço da Nação não passou dum conjunto sem qualquer interesse em discutir os três pontos, completamente desconectado dos objectivos clubísticos.
Resultou por isso o primeiro abre-olhos da temporada, num jogo onde o Vitória SC assumiu candidatura europeia pela forma corajosa com que se impôs a um Benfica ainda invencível e onde nasceram estrelas – como Bamba, o italiano que revelou talento para omnipresente – que obrigaram Roger Schmidt a passar, finalmente, por momentos de atabalhoado raciocínio: como a rábula da substituição de Rafa por John Brooks, o americano que de central limitado tentou passar a ponta de lança… útil.
Porém, notou-se que o episódio ficou como lição para as semanas seguintes: até final de Outubro, duas vezes um corajoso ‘alto lá!’ ao Paris Saint-Germain FC e uma vitória no Dragão.
2.
Quatro piropos à Velha Senhora – Última goleada a um ex-campeão europeu? Aquele 4-1 ao PSV com Jorge Jesus. Mas era Liga Europa, portanto continuemos a procurar: última vez que o Benfica tinha derrotado (por quatro ou mais golos) alguém com nome na lista de vencedores na principal prova uefeira? É preciso virar centenas de páginas e lá chegamos, ofegantes, a… 1972. O Feyenoord de Ernst Happel, campeão em ’70, levou 5-1 na Luz dois anos depois.
50 anos mais tarde, a Juventus que chegou a Lisboa não estava na sua melhor fase, mas ainda merecia os maiores elogios – até que se dizia, à boca cheia, que o Benfica tivera azar no sorteio e que o máximo a almejar seria o segundo lugar. A realidade veio mostrar que aquele Benfica, quando satisfeito, tirava partido da fraqueza alheia para perder a cabeça e libertar todo o bom futebol acumulado desde 2019 – foram quatro, podiam ser seis ou sete, e só no último quarto de hora, quando o cansaço apareceu pela mão da histeria aliada a uma deficiente gestão de esforço, se permitiu uma espécie de reacção: quando dois rapazes sem nome – Iling Junior e Matías Soulé – descortinaram os caminhos sinuosos do golo que os Vlahovics, os Rabiots e os Cuadrados nunca tiveram arcaboiço para imaginar.
3.
Derrocada na Pedreira – Depois do Mundial, nova onda de parvalheira: o Benfica que não tinha perdido nenhum dos 29 jogos anteriores, entrava a perder na Pedreira – frente a um SC Braga que, dias antes, tinha sido despachado com cinco golos numa ida a Alvalade para a Taça da Liga – com um golo de Abel Ruiz aos dois minutos. À meia-hora, outro. E o Benfica nada de reagir.
Continuou o Braga na boa onda e Schmidt, acreditando que talvez fossem os ares do Minho que faziam mal ao onze base, mandou logo Musa depois do intervalo. Ou se marcava cedo ou nada feito. Mas um Enzo feito Narciso, pela medalha mundialista e nas rédeas dum hype gigantesco por ter sido melhor jogador jovem da prova, parecia já não ter paciência para ser maestro em campos mais modestos. Sem dar o exemplo, foram atrás do desleixo os colegas – e o 3-0, que surge por volta dos 70’, foi o prelúdio ideal para uma longa novela latino-americana, que comprometeu aspirações e fez tremer um balneário que a certo ponto parecia de betão armado.
O primeiro grande desafio encarnado para Schmidt enquanto gestor de homens – e que percebendo isso, deixou assentar, cabisbaixo: «Agora, talvez, possamos apreciar aquilo que fizemos antes».
4.
«HERE WE GO! Agreement reached right now between Chelsea & Benfica» – Será difícil encontrar provas tão esclarecedoras do talento colossal de Enzo Fernández e da sua preponderância no Benfica como a estatística em epígrafe: além de precisar de apenas quatro meses em Portugal para ser top 5, é o único médio de engrenagem à frente e com evidentes responsabilidades ofensivas.
Já discutidas até à exaustão as nuances da novela de Janeiro, urge tentar ver o positivo numa venda que arredou o Benfica dum título ganho calmamente em Março e duma real hipótese na Champions: permitiu descobrir em Chiquinho algo muito mais grandioso que um dispensado a aproveitar o carrossel de empréstimos e em João Neves uma entusiasmante solução para o futuro.
Mas ficará sempre o gosto amargo da imaginação, dum Benfica com Enzo Fernández até Junho – Roger Schmidt sentindo o mesmo, deixou soltar nos festejos do título que, tão ou mais pertinente que tratar da substituição de Grimaldo, seria trazer um oito da mesma ‘laia’ do argentino que se mudou à pressa para Londres…
5.
Em abril, águas mil (e a forma como o barco encarnado meteu água por todos os lados) – Evidentemente que seria ingénuo pensar que, depois da paragem de Setembro e do Mundial terem abalado as fundações encarnadas, nova paragem para compromissos internacionais não colocassem em causa tudo o que de excepcional tinha feito o Benfica.
Mas como todos os grandes heróis precisam das amarguras para tornar eternos os seus feitos, Roger Schmidt não podia chegar a Portugal e limpar tudo de fio a pavio, sem grandes complicações nem registo de ocorrências extraordinárias – ao encontro duma equipa que só tinha perdido uma vez até Abril, vieram três chapadas a meter tudo em sentido, jogadores e adeptos. O recorde de Rui Vitória, de quatro derrotas seguidas, só não foi igualado por demonstração de coragem no Giuseppe Meazza, frente a um Inter matreiro – o Benfica teve, nesse dia, completa noção do seu frágil estado emocional e lastimáveis índices físicos. Mas evitar a derrocada que já se adivinhava em termos nacionais – de dez pontos que podiam ser treze de superioridade, passou-se a quatro – era o essencial.
Portanto, nada de igualar recordes negativos e estancar a ferida, que ela cicatrizar-se-ia com o tempo. Dito e feito, que se reorganizaram as tropas e o último sprint até ao título se fez na mesma toada, do grande coração em detrimento da nota artística habitual. Mais uma lição para 2023-24."
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