segunda-feira, 17 de abril de 2023

Até à próxima


"«Quando há muitos anos, comecei a escrever para os jornais, um velho e sábio jornalista disse-me: ESCREVE SEMPRE A TUA PRÓXIMA CRÓNICA COMO SE FOSSE A ÚLTIMA.»
A frase não é minha, por isso é que está entre comas, mas sim de Dinis Machado, também ele um velho e sábio jornalista (e escritor), que publicou várias crónicas sobre futebol em jornais e revistas portuguesas ao longo dos anos 70, 80 e 90 — textos esses posteriormente reunidos no livro A Liberdade do Drible, de 2015.
Esta, intitulada «Até à Próxima», foi escrita a 1 de Dezembro de 1988, no jornal no Tal & Qual, ainda o Tal & Qual era um jornal e eu um miúdo de oito anos a dar os primeiros toques na bola e no abecedário. Após esta frase, escrita assim mesmo, a letras garrafais, enumera uma série de razões que justificam esta atitude perante a crónica, entre elas «pode dar-te um vazio na cabeça», «podem roubar-te a esferográfica», «o teu maior inimigo pode não te dar tempo a que faças outra» ou «o amanhã é precário».
Não sou saudosista, creio já ter dito e repito, mas sempre que leio e releio e estes textos, não deixo de ficar fascinado.
Os títulos — «Evocação das Colecções de Cromos», «A Infância e o Futebol», «O Sonho do Velho Treinador», «Guarda-Redes - o Lugar e o Risco» ou «Breviário Felliniano» eram, desde logo, um manifesto de intenções, uma espécie de linha vermelha para todos aqueles cujo futebol não vai para além do resultado e das cores do clube. Ali as regras eram outras, quem mandava era o cronista e não o jogo, alguém capaz de «desperdiçar» uma crónica d’ A Bola a dissertar sobre o cinema de Fellini, como aconteceu a 14 de Julho de 1995. A dada altura, porventura sentindo-se um pouco culpado, afirma que «um dos prazeres, aqui, nesta coluna, são as várias deslocações do tema».
Desconheço se tinha muitos ou poucos leitores, nem haveria, por aqueles dias, uma forma eficaz de medir o real alcance dos textos, tenho, apesar de tudo, a certeza de que eram vitais à saúde do jornalismo. A falta de espontaneidade, de improviso, de rasgo e de génio que a maioria de nós, mais ou menos fanáticos, com maior ou menor cultura desportiva, reconhece existir no futebol moderno, é a mesma de que, salvo raras e honrosas excepções, padece o jornalismo — desportivo ou não. Que os responsáveis de um site especializado tenham tido a ousadia de deixar um cronista escrever sobre os jogos de futebol entre amigos, com várias e flagrantes deslocações do tema, é um feito e um privilégio.
Esta será a última crónica. Chega quando estou no estaleiro há três semanas, com uma infecção respiratória que me tolheu os pulmões e as pernas levando-me, inclusive, a questionar se alguma vez voltarei a entrar em campo (oh dramatismo, é claro que voltarei). Não pensem, contudo, que a direção se aproveitou do meu estado para arrumar a casa, nada disso. Foi uma decisão pré-programada, saber sair a jogar e soltar a bola a tempo, no campo como na escrita.
Ao contrário de Dinis Machado, nunca escrevi nenhum destes textos como se fosse o último, mas sempre como se fosse a primeiro. Vai dar ao mesmo, porventura. 15 crónicas sempre com o esférico rente à relva, de cabeça levantada, procurando defender até à exaustão aquela velha e ultrapassada ideia de que os melhores jogadores, tal como os melhores leitores e jornalistas, são aqueles que conseguem ver o campo todo e rematar para lá do seu umbigo."

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