quarta-feira, 1 de março de 2023

Mulheres. Jogadoras. Futebolistas


"Ainda late no pensamento a água que inundou os olhos de Sandra Silva, ou Figo, quando falávamos ao telefone sobre o apuramento da seleção portuguesa para o Campeonato do Mundo de futebol. Parecia que alguém lhe tapava a garganta para a impedir de falar. Era uma sufocada emoção audível, ou por ouvir. Havia tanta força naqueles suspiros, nas palavras que eram sopros. “Peço desculpa”, chegou a dizer como se houvesse pecado na felicidade. Foram demasiados dias ao longo de três décadas a conjugar tudo, o amor ao jogo e as inevitabilidades, para manter o futebol na sua vida. Treinos fora de horas, empregos em xeque, condições deploráveis, pelados, insultos e desdém.
“Quem me dera ter menos 25 ou 30 anos”, disse também, lamentando mudamente não ter podido esticar a carreira eternamente ao ponto de poder tocar na bola num Mundial. Os desabafos sobre o passado estiveram em linha com os de Edite Fernandes, Anabela Silva, Paula Cristina e Carla Couto, uma recordista em internacionalizações recentemente ultrapassada por Ana Borges, Carole Costa e Dolores Silva, o que ajuda a consagrar os pilares desta geração que já jogou dois Europeus (2017 e 2022, este por substituição da Rússia) e que no verão terá, na Nova Zelândia e na Austrália, um Campeonato do Mundo para mostrar ao que vem e desfrutar. A geração anterior “partiu pedra”, explicou uma das jogadoras referidas. Herdaram uma situação hoje e para sempre incompreensível: a seleção feminina de futebol esteve inoperacional entre 1983 e 1993. Assim, sem mais nem menos, como se fosse um capricho. O que se perde numa década não é sequer quantificável. É uma tragédia.
Alfredina Silva foi uma das pioneiras da seleção que se estreou em França, em 1981. Era tão impensável que as futebolistas de então, mui amadoras pois claro, só acreditaram quando as cartas com as convocatórias aterraram nas devidas caixas de correio. “Era o sonho de muitas meninas e de muitas mulheres”, reconheceu. Esta senhora que era canhota, com uma finta circular que deixava tontas as rivais, não perdeu tempo e olhou para a frente: “Precisamos de ter mais atletas e que os clubes continuem a apostar no futebol feminino para podermos ser uma potência mundial. Precisamos de não recuar e de não ficar deslumbrados com este resultado”. Atualmente, há pouco mais de 13 mil praticantes.
Apesar da bebedeira de alegria que vai regando os nossos dias, falta muita coisa. Só quatro clubes de 12 da 1.ª Divisão são compostos exclusivamente por futebolistas profissionais, mas mesmo o acompanhamento destas jogadoras não é feito com os padrões dos departamentos do futebol masculino. Se dentro dos clubes há diferenças, o fosso para outros emblemas chega a ser assombroso. Há dignidade nessa contenda, mas é inviável. Quando o nível subir como um todo, as jogadoras serão melhores (e a seleção terá mais por onde escolher), as equipas terão outros desafios e exigências em campo, haverá mais adeptos, melhores treinadores, staffs mais preparados e outras ferramentas para ajudar na formação e consolidação da atleta. Até quando ficará o FC Porto alheio a esta revolução? Os gigantes e históricos devem estar do lado certo da luta. Por outro lado, veem-se também jogos em sintéticos péssimos, algo que será impossível a partir de 2024/25, temporada em que a relva que cheira a relva terá de ser rainha.
Há não muito tempo o Sindicato de Jogadores enviou à Federação Portuguesa de Futebol uma proposta de acordo coletivo de trabalho, um tema que caiu rapidamente em esquecimento e que as futebolistas quase, quase mundialistas não aproveitaram para meter em cima da mesa quando tiveram mais atenção do que nunca. Só quando as jogadoras estiverem protegidas nos seus direitos, seja relativamente à segurança laboral e profissionalização, aos salários ou à maternidade, é que se poderá falar numa séria e verdadeira aposta no futebol feminino.
Ou seja, há muitos punhos por levantar e variadas revoluções por gritar e completar. Outra delas está também na linguagem. “Meninas?”, questionou Tatiana Pinto, respaldada por Jéssica Silva, quando um jornal escreveu sobre o regresso das jogadoras da Nova Zelândia. Na estreia da seleção portuguesa, em 1981, o “Diário de Lisboa” escreveu no título da história: “Meninas ao chuto empatam em França”. As palavras importam, permitem posicionamentos e derrubar ou criar narrativas. Não faltam artigos em jornais internacionais a teorizar sobre essa abordagem, que é referida como condescendente, paternalista e sexista. Um deles mostra até como, no contexto laboral, mulheres tratadas por “miúdas” ou “meninas” sentem-se menos confiantes, desconfiando das suas capacidades de liderança e de como os outros as olham para cargos mais importantes.
Perguntei a algumas mulheres que estão ligadas ao futebol, uma delas futebolista da seleção, por que razão incomoda aquele termo. As respostas: “É um machismo gigantesco porque é tratamento paternalista, como se fôssemos inferiores de algum modo. Meninas são menores de idade, não são mulheres feitas e profissionais de futebol”; “Dizerem meninas é menosprezar tudo o que elas fizeram, é uma palavra frágil e com significado negativo”; “Trata-se de igualdade, não nos referimos apenas ao lado financeiro e de condições. A linguagem é fulcral. Não ouvimos ‘os meninos foram ao Catar’. Menina sempre foi um termo de inferioridade. Ser jogadora de seleção nacional A é ser uma mulher adulta”; “Há mulheres de 30 anos ou mais a jogar na nossa seleção, é uma falta de respeito. O que incomoda mais é a falta de reconhecimento”; “Não são meninas, mas sim mulheres. O nome meninas para a nossa sociedade, infelizmente, é um termo depreciativo porque é associado a outras atividades”; “É um termo altamente condescendente que menoriza as mulheres. As jogadoras são todas mulheres. Como se [o futebol] fosse uma coisinha para as meninas se divertirem, enquanto os homens jogam futebol a sério”."

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