"Há palavras e expressões de que gostamos e outras que detestamos e ainda aquelas, mais complexas, que ora amamos ora odiamos, dependendo dos dias e do contexto. Olheiro, por exemplo. «Pessoa que tem como actividade observar desportistas», diz o dicionário ok, «especialmente no futebol, para descobrir novos talentos ou tácticas». Alguém que vê mais longe, acrescento e sempre acreditei eu. Um garimpeiro que viaja de terra em terra, campo em campo, à procura não daquilo que luz, mas de um passe, de uma recepção ou de um movimento que os olhos dos comuns dos mortais, tão pequenos e limitados, são incapazes de ver ou assimilar.
Esta é a parte nobre da expressão. Olheiro é também «aquele que observa com o objetivo de transmitir informações a alguém». Um informador, um bufo, um caçador furtivo que nos apanha pelas costas, desatentos, desarmados, alguém que recolhe dados secretos ou privilegiados e vai ganhar ou dar a ganhar com isso.
Bons ou maus, a verdade é que os olheiros me fascinavam. Imaginava-os como criaturas quase mitológicas, disfarçados no meio da multidão ou escondidos atrás de um poste, a fingir que eram bombeiros e maqueiros, só para que, naquele dia, os jogadores não se enervassem ou transcendessem, não borrassem a pintura ou pintassem quadros que jamais conseguiram reproduzir. Acreditava que, com um pouco de sorte, também um deles acabaria por me descobrir, porventura alertados por uma dica anónima do meu pai, de um vizinho ou de um amigo, anunciando-lhes que na freguesia de Vilarinho, Santo Tirso, havia um baixinho com dois ou três quilos de peso a mais, mas capaz de voar como poucos.
Não sei se ainda há olheiros, deve haver, equipados com câmaras, computadores e lentes especiais que permitem analisar e quantificar ao segundo todos os movimentos, reduzindo assim o erro e não deixando margem para a dúvida, o campo onde os verdadeiros olheiros navegavam e emergiam. Os únicos capazes de distinguir a olho nu entre um jogador que joga a passo ou de «cadeirinha».
Sempre fui fascinado por estes últimos. Quando deixei a baliza era este o tipo de jogador que desejava tornar-me. Observei-os, também eu, durante anos a fio, desde a linha de baliza, nos muitos torneios que fui fazendo pelas redondezas. Eram, sobretudo, jogadores mais velhos. Os mais novos corriam, esfolavam-se, matavam-se, eles não precisavam. Não só eram mais velhos, como mais inteligentes. Deixavam que fosse a cabeça e não o corpo a pausar e controlar o ritmo e o jogo, como se estivessem sentados num cadeirão — fazendo sentir-nos ainda mais pequenos.
Lembrei-me disto esta semana, durante o jogo, ao ver um homem observar-nos, desde a parte de fora do campo. Tinha chapéu e guarda-chuva, apesar de não chover. É possível que estivesse à procura de alguém ou apenas a ver a partida. Ou que fosse um olheiro. Não de futebol, com toda a certeza, mas de Walking Football, modalidade criada em 2011, e na qual a Federação Portuguesa parece apostar. Dizem as regras que se destina a praticantes com mais de 50 anos; que não há guarda-redes; que cada equipa é formada por cinco elementos; que a bola não pode subir acima da cintura; que não é permitido dar mais de três toques consecutivos; que o golo só é válido quando marcado dentro da área; e que não se pode correr.
Por momentos, imaginei-o a abordar alguns de nós, porventura todos, tal a lentidão com que jogámos, e seduzir-nos a integrar um clube ou mesmo a seleção portuguesa, rumo ao primeiro Mundial, que terá lugar, este ano, na cidade inglesa de Derby. Convite que, infelizmente, teria de recusar, até porque ainda não tenho idade.
Restam-me oito anos para me adaptar às regras e, quem sabe, encontrar a minha cadeira e carreira de sonho."
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