domingo, 5 de fevereiro de 2023

Para que servem as estrelas?


"O céu de uma criança que agora abra os olhos pela primeira vez numa cidade do hemisfério norte, numa zona em que são visíveis 250 estrelas quando estica o olhar para cima, será diferente. Quando fizer 18 anos, serão apenas 100 as estrelas que se exibem em cima da sua cabeça. Se chegar aos 80, fintando denilsonamente as agruras da vida, talvez tenha apenas no tecto infinito cinco brilhantes estrelas.
Foi isso que Christopher Kyba, do Centro Alemão de Investigação em Geociências de Potsdam, e outros investigadores contaram há dias ao “El País”. O tema é a contaminação luminosa e a mão do homem, claro, mas, e transtornando os cientistas, exaltei silenciosa e mansamente a alegada inutilidade que há nesse gesto que ainda procura alguém a quem cause alguma repulsa. Para que serve olhar as estrelas no céu? Repetindo o que certa vez surgiu numa destas páginas, recordo Valdano e uma história de Borges, a quem lhe perguntaram para que servia a poesia. O argentino, entre outras coisas, perguntou como quem espeta uma gloriosa e reluzente árvore gigante num jardim cinzento e abandonado: “Para que serve o amanhecer? Para que servem as carícias? Para que serve o cheiro do café?”.
Estas ideias inúteis, lá está, surgiram enquanto Cristiano Ronaldo se estreava no campeonato saudita, na tarde de domingo. Certa vez, na ressaca de episódios hediondos, surgiu a ideologia de perna curta “zero ídolos” para precaver angústias futuras. Mas quantos jogadores, hoje em dia, teriam a força para colar pessoas de todo o mundo a ver um Al Nassr-Al Ettifaq? Ou para meterem jornalistas a escreverem crónicas ou mini-crónicas sobre a estreia de um futebolista aí? Talvez apenas Cristiano Ronaldo, Lionel Messi, Neymar Jr. e quem sabe Kylian Mbappé. Que ídolos planetários vêm aí? Ainda estamos para baba? Quão importantes são as superestrelas para o futuro da modalidade?
Os que começam a amar este desporto (ou outros, vejam o que os nossos rapazes do andebol fizeram na Suécia) desde pequenos têm sempre uma montanha com uma farda impecável qualquer que faz coisas impossíveis com uma bola e que faz muitos golos ou deixa adversários para trás e que é especial e que dá fama ao mais famoso desporto do mundo. Estará a obsessão por coletivo, rigor e organização a ameaçar o futebol que destapava impossíveis? Estará a aversão ao risco e a obediência ao passe certinho a roubar estrelas nos céus das crianças que já nasceram e estão por nascer?
Cristiano Ronaldo, com a braçadeira de capitão e uma marca no rosto que brotou do duelo com o PSG, estreou-se na liga saudita, um jogo que passou no sexto canal da estação de desporto que assinou os direitos televisivos daquele campeonato, e foi discreto. A cada aparição discreta de Cristiano a nostalgia será testada, o processo de banalização será como uma sova. Combinou com os colegas, que não o insultam ao não o procurarem faminta e constantemente, tentou uma ou outra bola na baliza, disparou por cima num livre direto, celebrou com vontade um golo alheio e deu cabo das ancas do lateral direito que jogava do outro lado, Saeed Al-Muwallad, quando simulou um remate e puxou a bola para o pé esquerdo, cutucando a libido dos que o lambiam com os olhos.
O homem que em certa tarde, enquanto me afundava no sofá, vi bisar no Estádio Old Trafford e em quem nesse mesmo sábado tropecei numa discoteca lisboeta, confirmando a omnipresença da figura, é agora apenas um bom jogador na Arábia Saudita, o que é desolador para os que envelheceram e se fizeram alguém a admirar monstros. Seja por amor ao jogo, sobrevivência ou dinheiro, tudo é legítimo, mas fica cada vez mais difícil compreender a tal fatídica entrevista, antes do Mundial, e testemunhar que trocou a Premier League pela Liga Saudita.
Nesta altura, apesar de tudo e de alguns desencantos que semeou em alguns compatriotas ao longo do caminho, não deixa de ser prazeroso ver como sorri inocentemente, e como aplaude e aceita a banalidade que o rodeia (Talisca ainda é um belíssimo jogador, convém dizer), mesmo que esteja a ser regado com dinheiro para lavar a imagem de um país na lista negra da Nações Unidas ou para influenciar certos ilustres cartolas para futuras organizações de eventos. Apesar de tudo, não devemos confundir as pessoas com o Estado, qualquer povo merece uma trégua ou um pedaço de felicidade e um mero futebolista pode ser isso mesmo. Em Doha, os sauditas fizeram uma festa admirável e cantavam ébrios de alegria.
Se as pernas deixassem, olhando para a amostra domingueira, parece que Cristiano aceitaria voltar a ser o futebolista que foi na primeira passagem por Manchester, quando ganhou fama pelos dribles fabulosos (nem sempre úteis, obrigado) e a comparação com George Best. E talvez seja agora uma inverosímil estrela no céu de um miúdo ou de uma miúda da Arábia Saudita. Afinal, ver as estrelas no céu nunca é inútil, dirão alguns."

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