sábado, 4 de fevereiro de 2023

Os jogadores enquanto fantoches dos treinadores


"Estou convencida de que um dos mais determinantes aspectos na carreira de um jogador de futebol é o seu conjunto de treinadores. A ideia nasceu na autobiografia de Johan Cruyff, quando nela explicou que, na altura em que assumiu o comando técnico do Barcelona, os dirigentes catalães não contavam com Guardiola, porque era «um pau de virar tripas que não sabia defender, que não tinha força e que não conseguia fazer nada no ar». E o que Cruyff fez com Guardiola, Pep fez com Sergio Busquets, repescando-o da equipa B até, compassadamente, o colocar à frente de Yaya Touré no seu 11 titular de gala.
Há quem se deixe governar pelos horóscopos da revista Maria, alegando que os bons jogadores, mais tarde ou mais cedo, acabam por chegar ao topo. Ora, eu cá não me iludo: dificilmente Busquets se sentaria à mesa com os melhores médios-defensivos de sempre se não tivesse contado com a preferência de Pep face às suas características, indispensáveis no futebol que o treinador idealizara.
Urge esta reflexão numa altura em que o mercado se tornou louco, que é também uma altura em que, através dos valores despendidos, identificamos avaliações de alguns treinadores. Rúben Amorim, responsável por transformar, em pouco tempo, um suplente da equipa de sub-23 do Sporting num dos melhores laterais do mundo, Nuno Mendes, vê-se, agora, julgado por gastar 7,5 milhões de euros, mais 5 milhões mediante o cumprimento de objectivos, no potencial de Diomande. No Benfica, Roger Schmidt fez com que milhões torcessem o nariz perante a sua aposta em Florentino, retornado à Luz após dois empréstimos mal sucedidos, que nem com a chegada de Aursnes perdeu espaço. Por outro lado, Sérgio Conceição continua sem olhar para recordes de transferências, numa altura em que já passaram mais de três meses desde que David Carmo, protagonista do negócio mais caro entre clubes portugueses, completou minutos pelo FC Porto.
São convicções.
Não se é bom treinador por se ser um bom chefe de família ou por se bater muitas vezes no símbolo, tal como a um bom cozinheiro não lhe basta ser gordo, mesmo que se pressuponha que tem boa boca. De tão pouco lhes vale a lenga-lenga de que ‘os bons lá chegarão’, já que a ignorância dessa balela começa logo por ignorar a subjectividade do termo ‘bons’. O Pep idealizava um tipo de futebol, mas se, ao invés do Busquets, lá tivesse posto o Arturo Vidal, a carroça não teria andado como andou. Se calhar, até há quem ache que tinha andado melhor, porque peixe não puxa carroça, mas o futebol mostrou-nos que, com Busquets, fluiu lindamente e essa foi a vitória da convicção daquele treinador. Com outros estilos de carroças, vencem Klopp, Nagelsmann, Simeone, Ancelotti. Amorim, Schmidt, Conceição. Nenhum procura provar que só existe um caminho para vencer, mas cada um procura vencer à sua maneira, apostando, muitas vezes, em ‘bons jogadores’ diferentes. E não é descabido explicar que Busquets não teria lugar com Simeone, Darwin não teria lugar com Pep, Florentino não teve lugar com Jorge Jesus. Claro que os treinadores têm preferências.
Ajuizar a qualidade de um jogador à luz dos clubes que representou, dos técnicos que nele confiaram ou dos minutos realizados em contexto sénior não é analisar, é enviar um currículo para o Zerozero. Já nos questionámos sobre a incapacidade de Nuno Espírito Santo em reconhecer talento no Vitinha? Por vezes, a falta de utilização de um jogador com determinadas características, pode revelar mais sobre o perfil do treinador do que sobre a falta de talento do atleta. Desde que De Zerbi chegou ao Brighton, Mitoma tem sido um dos destaques da Premier League. Pelo Japão, no Mundial, nunca foi titular. Após uma das melhores épocas da carreira, Thiago não contou para Luis Enrique. Odegaard, emprestado pelo Real Madrid ao Heerenveen, ao Vitesse, à Real Sociedad e ao Arsenal é, na actualidade, e já depois de ter sido vendido pelos merengues, um dos melhores médios do mundo.
No futebol, se estiveres à espera de que os outros validem as tuas convicções, dificilmente passarás de um cata-vento. É fácil gostar dos que são vendidos por 100 milhões e desprezar os que não constam na convocatória. Acreditar no talento do Vitinha é acreditar nele quando foi emprestado pelo FC Porto ao Wolverhampton com uma cláusula de compra de 20 milhões; acreditar no talento do Florentino é acreditar nele quando foi emprestado pelo Benfica ao Mónaco e ao Getafe; acreditar no talento do Daniel Bragança é acreditar nele quando foi emprestado pelo Sporting ao Farense e ao Estoril; acreditar no talento do Tiago Dantas é acreditar nele mesmo não tendo sido titular indiscutível no Tondela ou estando, agora, emprestado ao PAOK; acreditar no talento do Francisco Geraldes é acreditar nele sabendo que foi ignorado por Jorge Jesus, José Peseiro, Marcel Keizer, Silas, Ruben Amorim, que joga no Estoril e que, aos 27 anos, terá sérias dificuldades em passar para outro patamar.
São convicções. Não estão dependentes da validação dos outros."

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