sábado, 18 de fevereiro de 2023

O Eléctrico do Paraíso


"Os adeptos exigiam golos à linha avançada do Real Oviedo - em casa, pelo menos 5. Porque o número tinha um defeito e chamaram-lhe O Corcunda

Eu gosto particularmente das Astúrias, sobretudo de Gijón (Xixón) e do seu mar frio e inquieto, mas também de Oviedo, essa cidade de estudantes a quem muitos chamam de Capital do Paraíso. Limpa, fresca, com a vivacidade própria das urbes que estão cheias de jovens, terra dos Carbayones, os Carvalhões, porque um dia a natural brutalidade da burocracia humana resolveu abater um carvalho (carbayu em asturiano) com mais de mil anos só porque estava tão velho que corria o risco de tombar, esquecendo-se os governantes da cidade que as árvores morrem de pé. Ficou uma placa de cobre a assinalar o lugar onde vivera a árvore lendária, mas nada toma o lugar de uma árvore com mil anos se não ao fim de mil anos e o episódio sujou o nome da Capital do Paraíso e a embirração geral caiu sobre os Carvalhões.
Foram os estudantes das classes mais ricas de Oviedo que trouxeram o futebol para a cidade depois de terem concluído os seus cursos em Inglaterra e regressado da Grande Ilha Para Lá da Mancha com a paixão do jogo entranhada na sua dura alma asturiana. Fundaram clubes: o Real Stadium Club Ovetense, em 1914, representante das classes populares, e Real Club Deportivo Oviedo, em 1919, orgulhoso da sua origem por entre as famílias mais endinheiradas. Os anos passaram e um dia, uma figura ímpar do futebol das Astúrias, o guarda-redes Óscar Álvarez, ergueu a voz para dizer alto aquilo que já todos pensavam em silêncio: «Oviedo é pequena demais para duas equipas que teimam em canibalizar-se, façam-se tréguas, unam-se as forças!». Ninguém ficava inerte perante as palavras do grande Óscar. No dia 26 de abril de 1926, deu-se a fusão. Surgiu o Real Oviedo de camisolas azul-céu-depois-da-chuva e a Cruz de Los Ángeles sobre o peito, o escudo da cidade. Jogava no Barrio de Fozaneldi no Vetusta del Stadium. Não tardaria a possuir uma linha avançada que marcou para sempre a história do futebol em Espanha: Casuco, Gallart, Lángara, Galé e Inciarte. La Eléctrica ou La Delantera Eléctrica. O orgulho da Capital do Paraíso!
Numa só temporada, 34 jogos e 101 golos. Um vendaval! La Eléctrica rebentava como raios e coriscos sobre as defesas adversárias. Deixava guarda-redes em choque. Relâmpagos, centelhas, chispas, fagulhas invadiam os meios-campos adversários, devassavam as grande-áreas e as bolas entravam nas balizas umas atrás das outras como se o próprio Zeus comandasse um exército meteórico. Passaram como um cometa mas, logo a seguir, veio outro, azul como as camisolas do Real, alguns chamaram-lhe La Segunda Eléctrica, muitos confundem uma com a outra, afinal houve três jogadores que representaram ambas, não foram diferentes, foram irmãs-gémeas nascidas da faúlha magnética do golo, Casuco, Gallart, Lángara, Herrerita e Emilín, 54 jogos juntos, 124 golos marcados! Eram jogadores, companheiros e irmãos e nem a carnificina da Guerra Civil de Espanha os separou. Isidro Lángara talvez fosse o mais explosivo de todos o raios de La Eléctrica. Nascera em Pasaia, no País Basco, no dia 25 de maio de 1912, tornou-se tão grande que passou pelo San Lorenzo de Almagro, da Argentina, no tempo em que os azuis e grenás do barrio de Almagro, em Buenos Aires, era propriedade de um português, Carlos de los Santos Valente, e foi sempre uma zona agrícola até ser invadida pelas fábricas de tijolo. Como era tempo de guerra na Europa, os jornais batizavam os quintetos ofensivos com nomes bélicos: havia os Stukas do Sevilha – Pepillo, José López, Campanal e Rafael Berroca; os mais suaves de La Delantera de Seda do Atlético de Madrid – Juncosa, Vidal, Silva, José Luis e Basabé; e a inevitável Delentera Eléctrica, um nome criado pelo enorme jornalista que foi Moncho, de La Voz de Las Asturias.
Casuco e Gallart eram um só. Com a diferença que Gallart era um catalão baixinho, com apenas 1,65m, mas tão rápido e tão surpreendente que o apelidavam de Duende, um mágico que não respeitava nem Zamora, o keeper da seleção de Espanha que se queixou de sofrer golos por baixo das pernas marcados por Gallart a despeito de ter no fundo da baliza a sua protetora, uma boneca de trapos. Langara, por seu lado, marcava golos com a facilidade de quem emborca copos de vinho branco. Para ele as balizas eram demasiado grandes e os guarda-redes demasiado pequenos, de tal forma que ganhou três troféus Pichichi (melhor marcador do campeonato de Espanha), sendo também o campeão dos goleadores na Argentina e no México quando resolveu ir para lá jogar.
Oviedo Capital do Paraíso! Electrificada pelo seu Real que, já no Estádio de Buenavista, ouvia os adeptos exigirem que marcassem pelo menos cinco golos para afirmarem que lhes tinha saído O Corcunda. Porque o n.º 5 do marcador tinha um defeito que o fazia parecer Quasimodo. E o Corcunda era a festa. Electrizante."

Sem comentários:

Enviar um comentário

A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!