quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Enzo esfumou-se, mas as pantufas de João Mário continuam por aí


"A equipa de Roger Schmidt conquistou a 16.ª vitória em 19 jornadas da Liga, em Arouca, com golos de Petar Musa e João Mário (2), que já fez 14 nesta temporada (é a melhor marca da carreira). Sem Enzo Fernández, em trânsito para o Chelsea, foi Chiquinho quem fez o papel do argentino campeão do mundo

Enquanto os futebolistas do Benfica tentavam encontrar os espaços entre a populosa teia defensiva organizada e amarela do Arouca, os cartolas do clube ouviam numa sala qualquer os $uspiros dos senhores que vinham de Londres para levar Enzo Fernández. Enquanto João Mário finalizava no relvado do municipal da cidade duas jogadas que denunciavam a criatividade do grupo, um polegar foi levantado na tal sala e deram-se apertos de mão: 121 milhões de euros, thank you. Foi um 31 de janeiro diferente para os benfiquistas (mais doce ou mais amargo?), que somaram a 16.ª vitória em 19 jornadas e em simultâneo perderam um dos jogadores mais entusiasmantes do campeonato. Um campeão do mundo.
Foi Chiquinho quem fez de Enzo, jogando sem complexos e com qualidade no meio-campo, perto de Florentino, muitíssimo afinado e à vontade com a bola. Roger Schmidt não pôde contar esta noite com Gonçalo Ramos, Rafa e, naturalmente, Enzo Fernández, por isso apostou também em David Neres e Gonçalo Guedes, o primeiro atrás do segundo.
O Arouca, com várias ausências, preferiu a abordagem conservadora. A linha defensiva chegou a ter cinco, seis e sete jogadores. Os visitantes procuravam ter paciência com a bola. Durante muito tempo, David Simão e Alan Ruiz só ouviram o assobio dela a passar por eles. O Benfica, que reagia com vontade no momento em que perdia a bola, ia desenhando os melhores ataques pela esquerda, com triângulos erguidos entre Alejandro Grimaldo, Guedes e Fredrik Aursnes. Do outro lado era Ismaila Soro quem dava nas vistas: ora colando-se à defesa e mordendo no meio-campo, ora saindo com a bola controlada, queimando linhas e convocando a coragem para a garganta dos colegas.
Aos 25’, João Mário, que ia jogando da direita para o meio, meteu a bola na baliza. A jogada foi bela: Grimaldo tocou para Aursnes e o noruguês passou a Neres. O brasileiro, talvez no único momento em que foi um 10 esta noite, viu o movimento do colega, que aproveitava a linha desalinhada num terreno baldio, e devolveu-lhe a bola para dentro da área. Fredrik passou para o segundo poste, onde estava João Mário, com as pantufas do costume.
A equipa da casa foi saindo da toca a partir da meia hora, numa altura em que Nicolás Otamendi tratava de exibir os dotes defensivos. O ritmo do jogo era baixo. O Arouca, uma equipa tranquila na classificação, não sabia dar troco ao que vinha do outro lado, um conjunto de homens que assinou um pacto com a madame paciência. O mais desacertado, talvez desconfortável com a função ou com a relva cheia de areia, era Gonçalo Guedes, que ia dando de borla algumas bolas aos rivais, não tanto por arriscar, mas por questões técnicas.
Na segunda metade, o Arouca subiu as linhas e tentou tornar-se num anfitrião menos simpático. Afinal, perder não tem qualquer utilidade. Mateus Quaresma revelava qualidade, resistindo à pressão, esperando para tocar no colega e tentando aventuras para a frente. Mas, apesar dos bons sinais dos caseiros, foi o Benfica que voltou a marcar, depois de mais uma combinação fabulosa entre Bah, Florentino, Guedes e João Mário, que parece realmente jogar de pantufas e com tranquilizantes a gelar-lhe o sangue. O médio internacional português chegou aos 10 golos na Liga, 14 golos na temporada, o melhor registo de sempre.
A entrada de Bruno Marques, pelo novato e ex-Orlando City Benji Michel, apurou a convicção do jogo arouquense. O avançado, nascido há 23 anos no Recife, ameaçou em duas ocasiões seguidas na área benfiquista, depois de um livre lateral, sendo bloqueado pela defesa adversária. A seguir, depois de o agitador profissional Morlaye Sylla isolar Quaresma com uma trivela, a bola sobrou outra vez para o avançado, que viu o lateral esquerdo da sua equipa colocar-se à frente dele e cancelar o momento de glória prometido.
O Benfica foi tratando de tirar complexidade ao seu jogo, baixando o nível. O Arouca continuava sem ser a equipa acutilante e rápida que Roger Schmidt tanto elogiou na véspera deste jogo. Gonçalo Guedes deu o lugar a Petar Musa e o croata, aos 80’, fez o 3-0, aproveitando uma bola que sobrou das botas do caído David Neres. A forma como colocou a bola na baliza, desviando de Ignacio Arruabarrena, tresanda a carimbo de quem sabe o que anda fazer nesta profissão. A equipa de Roger Schmidt, com mais bola do que veneno, fez apenas cinco remates durante os 90 minutos, sendo que desses só três foram à baliza. Foram os tais três “passes” para golo, uma fiabilidade que seria salientada por Armando Evangelista.
O Benfica voltou a vencer, no terceiro jogo consecutivo fora de casa, e alcançou os 50 pontos na Liga, abrindo um fosso de 10 pontos para o Sp. Braga, que tem menos duas partidas jogadas no calendário. As dinâmicas da equipa da Luz parecem estar a voltar aos tempos pré-Mundial, com João Mário, em mais uma ode à serena simplicidade, e Aursnes implicados no arejado pátio do cérebro do jogo dos lisboetas. Falta saber – a curto, médio e longo prazo – como vai pesar no grupo e nas ideias do treinador a saída de Enzo Fernández, acertada a poucas horas do fecho do campeonato. Com a Liga dos Campeões ainda de pé e o namoro sério com o título de campeão nacional, falta descobrir o que significa esta decisão. Em que ficamos no tão badalado braço de ferro dos nossos e de outros tempos entre sucesso desportivo e vendas milionárias? Se era inevitável, embora tenha havido negociação, porquê esperar até ao último suspiro do mercado?"

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