domingo, 22 de janeiro de 2023

Românticos são os outros (a propósito de um Brighton encantador)


"Em Inglaterra, este é o ano de um super Arsenal, de um Newcastle que, literalmente, regressa ao futuro, de um Fulham de rendimento incrível, com Marco Silva a retocar um plantel secundário e a retirar dele o que não parecia viável, de um Brentford que concretiza um crescimento coerente e de sucesso. Todas equipas com traço de coragem, de risco, de transformarem cada jogo num resultado em aberto, que é que faz do futebol um jogo único e de Inglaterra uma pátria singular. E depois há o Brighton, que rende a nível superior e encanta de modo distinto dos demais. Acaba de destroçar o Liverpool, há uma semana, mas a questão não é tanto o que fez mas o modo como o fez. No futebol há muitas formas de ganhar, mas as melhores são quando se percebe que não aconteceu por acaso, que podia repetir-se, uma vez e mais outra, que era uma probabilidade. Já aqui volto, mas haver uma probabilidade alta de o Brighton ganhar ao Liverpool não é coisa pouca.
Este é o Brighton que resulta de uma construção firme, nos últimos quatro anos em particular. Acaba de vender Maupay ao Everton e Trossard ao Arsenal - faturando quase 50 milhões, depois de mais de 80 com Cucurella e Bissouma, todos este ano-, enquanto continua a atrair qualidade superior a um preço contido e garimpa novas pepitas que hão de render mais golos e milhões. Evan Ferguson já rende, irlandês de 18 anos, ponta de lança subido dos sub-23, já titular e impressionante na média de golos e assistências em menos de uma dezena de partidas. Começa também a ter mais tempo Jeremy Sarmiento, agitador equatoriano de 20 anos, três deles passados na formação do Benfica, enquanto espera a sua hora Gilmour, médio completo resgatado ao Chelsea, e se preparam para explodir mais dois teenagers pesquisados na América Latina: Enciso, paraguaio, avançado móvel mas vertical, e Buonanotte, criativo esquerdino argentino que acaba de chegar do Rosario Central. Há um perfil definido e uma coerência na política desportiva como é raro ver. O caminho de passos firmes tem a assinatura de um nome principal: Dan Ashworth, o Diretor Desportivo que definiu o rumo da empreitada e que acreditou em Graham Potter para comandar o barco. E num projeto assim fez o que se recomenda, mas raras vezes se concretiza: estabilizou primeiro para crescer depois. Perante o sucesso evidente, Ashworth foi, também ele, transferido, perante o apelo de um projeto milionário. E assim se fez acompanhar de gente de confiança, entre scouts e analistas, para mudar a tal história que parecia imutável no Newcastle. Vejam onde andam os magpies este ano. Nada acontece desta maneira por acaso.
Em Brighton, na debandada geral, saiu então o guru que era um Diretor Desportivo de verdade, partiram jogadores e, a meio do percurso, foi-se também o treinador dos milagres, Graham Potter, para tentar nova façanha num Chelsea à deriva. A encruzilhada era óbvia e a escolha para o comando da equipa seria decisiva. Foi quando chegou Roberto De Zerbi, italiano de Brescia, 43 anos, inveterado fumador e ortodoxo nas convicções sobre o belo jogo, qualidade provada num Sassuolo que transformou em sensação e no Shakthar para onde foi levado por mão portuguesa. De Zerbi ia ter o desafio de uma vida, num clube de crescimento estável, com qualidade de jogo cantada e onde em termos de pontos é muito difícil fazer melhor, após o nono lugar na época transata. Esta, a que só termina quando chegar o próximo verão, ainda terá muito para contar, mas há um história de encantar em curso na cidade costeira do sul de Inglaterra.
Em terra de sol (menos) e mar (sempre), brilha Solly March, que dito à portuguesa bem podia ser nome de esplanada. É ele quem mais ilumina o jogar dos sulistas, o símbolo da equipa aos meus olhos, pelo talento e pela libertação dos grilhões táticos. Como pôde um craque tão diferenciado ser visto durante anos como lateral esquerdo, quando muito um ala flanqueador, a quem se pediam movimentos repetitivos para cruzamento. Vê-lo em ações de classe no lado direito do ataque é uma delícia, pela capacidade de antever que é própria dos eleitos e pelo descaramento a finalizar seja quem for o rival. Quem não viu deveria ir mesmo espreitar o tal jogo com o Liverpool, nem que fosse só para ver Marsh. Até porque terá o brinde das fintas em aceleração de Mitoma - belo artigo de Ricardo Miguel Gonçalves aqui no Zerozero, a propósito desse novo filho do vento com dribles preparados em tese de Faculdade – mais a afirmação de Caicedo e McAllister no comando da casa das máquinas, a ressurreição de Lallana e ainda, e não menos importante, Pascal Gross, mente iluminada em papel secundário, que tanto assiste e faz golos como acerta o passo a lateral numa linha de quatro. Porque o importante mesmo, o decisivo, é ter a bola e cuidar bem dela, arriscar mesmo para não a perder, desde trás mas não apenas, sempre, seja onde for. É a marca do zorro, o Z de Zerbi neste Brighton.
De Zerbi está, pois, no catálogo dos românticos, na pantone de futebol colorido que tem Guardiola no topo. São os que acreditam que é jogando melhor e dominando mais que se está mais perto de ganhar. Juanma Lillo, ex-adjunto de Pep e pensador raro, resolveu há dias essa equação feita discussão gasta sobre românticos e pragmáticos. Tão simples como distinguir possibilidade de probabilidade (por isso prometi voltar a esta). No futebol, existe sempre a possibilidade de ganhar, desde que se leve a bola uma vez que seja até perto da baliza rival. Probabilidade é outra coisa, e aumenta na ordem direta do número de vezes que lá chegamos. Lillo diz que é nisso que trabalha, para aumentar a probabilidade. Ou seja, que pragmático é ele e outros que assim pensam. Românticos, sonhadores? Bem mais os outros, os que estão à espera de lá ir uma vez ou duas e ser felizes, nem que seja agarrados ao casaco da sorte, uma mezinha ou uma santinha no bolso."

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