sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Pelé: o samba sobre os relvados mas ambíguo na política


"Pelé triunfou antes de o futebol se tornar uma colossal indústria para ser exibida nos ecrãs. Naquele final dos anos 50 e na década de 60, o tempo em que Pelé mais sambou com a bola nos relvados, o futebol era visto nas bancadas dos estádios e escutado através dos vibrantes relatos na rádio. Pelé ainda entrou pela televisão, mas chegou no tempo do ecrã a preto e branco. Foi assim que Portugal o viu no lendário Mundial de 66, a que o cinema deu a cor que viria a irromper com esplendor no Mundial de 70 do “tri” do Brasil de Pelé, com Rivelino, Gerson, Clodoaldo, Jairzinho e Tostão.

Pelé: o samba sobre os relvados mas ambíguo na política É uma pena que não tenhamos imagens captadas com definição apurada da maior parte das jogadas que Pelé executou nos relvados. A tecnologia vai encarregar-se de as recriar – mas será uma réplica do original. Nas imagens reais que temos há uma marca constante: é o sorriso que aparece na expressão de Pelé quando a bola fica em conjugação com os pés dele, para depois começar o festival de dribles com arte de bailarino numa escola de samba.
Vemos muitas vezes a celebração da genialidade no futebol naquele lance do jogo Argentina-Inglaterra no Mundial de 86 no México, em que Maradona avançou a partir do meio do terreno de jogo e foi fintando um e outro dos jogadores ingleses até dar golo. O lance é prodigioso e ficou para a posteridade porque nesse 86 o futebol já se tinha instalado na televisão. Mas há relatos escritos e falados de jogadas de Pelé com semelhante inspiração, só que num tempo em que a tv ainda ia para os estádios com uma só câmara fixa colocada num alto da bancada.
Pelé é o percursor. Foi com ele que a camisola com o número 10 ganhou estatuto cimeiro especial. Ficou a ser a camisola do “rei” no futebol. Ele é o pioneiro, depois vieram os príncipes, Eusébio, Maradona, George Best, Johann Cruijff e os craques da poderosíssima indústria de agora.
Pelé também foi pioneiro dos mega contratos publicitários com futebolistas. Como primeiro rosto e figura universal do futebol, Pelé também deu a cara por várias marcas de topo, seja com a Pepsi, marcas de telemóveis, jogos de vídeo, bancos e até pelo Viagra.
Depois do tempo como futebolista, Pelé também teve lugar na política: foi ministro dos Desportos no governo de um presidente muito relevante no avanço democrático do Brasil, Fernando Henrique Cardoso(FHC). Nessa função ministerial foi o autor da chamada “lei Pelé” que consagrou direitos para os jogadores de futebol. Pelé foi, nesse ano 1995, o primeiro negro ou mestiço a dirigir um ministério num governo do Brasil.
Chegou a haver especulações de que Pelé poderia vir a ser candidato presidencial. A hipótese não avançou. Pelé teve relação ambígua com a política.
Ainda como futebolista, ele incarnou a ascenção social de um negro num país onde o racismo era forte. Agregou o país em torno de uma equipa multiétnica.
Mas, no tempo da severa ditadura brasileira, Pelé deixou-se instrumentalizar. Após o triunfo no Mundial de 70 aceitou posar com o presidente general ditador Ernesto Médici e a imagem foi propagada em cartazes de propaganda do regime por todo o Brasil. Pelé consentiu.
Há que deixar claro que Pelé, para além desse cartaz, nunca se pronunciou em apoio à ditadura brasileira. Mas calou-se. Nunca teve qualquer declaração sobre os muitos prisioneiros políticos, sobre as constantes torturas ou sobre a complexa e tão determinante questão racial. Nesse tempo houve quem sentisse mágoa por essa ambiguidade de Pelé. Houve quem o acusasse de se prestar a ser um negro ao serviço do poder dos brancos.
A realidade mostra que Pelé quis estar sempre bem com quem tinha o poder, seja Médici, Lula ou FHC.
É uma postura que contrasta com a de outra estrela do futebol brasileiro, Sócrates (1954-2011), que nos anos 70 e 80 se impôs no futebol e na ação social e política. Chamavam-lhe “o doutor” e multiplicou denúncias do regime de ditadura militar.
A política tem-se servido muito do futebol, e vice-versa, no Brasil. Muitos futebolistas intervieram no recente duelo presidencial, a maior parte dos jogadores de topo como apoiantes ativos de Bolsonaro – caso de Neymar, Lucas Moura ou Dani Alves. Juninho foi dos poucos a aparecer ao lado de Lula.
Pelé tinha abraçado Lula por várias vezes quando este era presidente. Agora, há meses, Pelé tinha oferecido a Bolsonaro uma camisola do “escrete” e o presidente derrotado apareceu várias vezes em campanha com uma camisola igual.
Pelé, fora dos estádios foi um dos primeiros milionários do futebol e quis sempre agradar aos de cima. Sobre o relvado, impôs-se para sempre, com a arte de bem jogar, como alegria do povo. É, indiscutivelmente, “o Rei”, pioneiro no tempo da inocência no futebol. Tudo começou a partir dele."

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