terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Futebolês - E


"“Entrelinhas”, o zero erudito

No seu afã de originalidade, um então jovem jornalista desportivo apresentou uma vez uma fórmula táctica inovadora, incluindo um zero, para descrever o “espaço vazio” estratégico de uma das equipas, do tipo 4x3x(0)x3, observação que não foi muito apreciada pela chefia de redação conservadora, mas que pode ter sido, com avanço de mais de vinte anos, a primeira descrição do jogo de “entrelinhas” que enche a boca dos comentadores e analistas contemporâneos.
“Linha" é uma palavra matriz do futebol. O onze que vai jogar, a “line up”. A “linha defensiva” desde que passou a ter quatro jogadores. A “linha ofensiva”, que inicialmente era de seis. A “linha média”. As “quatro linhas” do campo. A “linha lateral”. A “linha de fundo”. A sagrada “linha de golo”. Quase não sobra espaço naquele hectare e, mesmo assim, ainda querem que o jogo se faça “entre linhas”? Procurei ajuda e encontrei a descrição de um treinador com idade para ser filho daquele agora veterano (e grande) jornalista, no zerozero.com: “A palavra entrelinhas não passa despercebida a quem acompanha o fenómeno futebolístico. Tornou-se viral na tendência do futebol mais atual, vislumbrando o espaço de progressão, uma passagem para a aceleração, uma mudança de ritmo, a expressão do “jogar”.
Dou por mim a pensar, com comiseração, na vida destes futuros treinadores, puxando pela cabeça para adequar conceitos mirabolantes e rebuscados, nas suas dissertações académicas, a um jogo tão básico como o futebol. Progressão, aceleração, ritmo, jogo - qual destas partes é nova no futebol moderno?
Leandro Monteiro, a quem agradeço a mais clara definição do fenómeno, diz que o passe entre linhas, “funciona como catalisador para queimar etapas”, encontrar “colegas soltos” e ir “queimando as linhas de pressão do adversário”. Ou seja, “com um passe desse efeito, podemos ultrapassar uma linha média inteira. Após a receção e se esta coadunar com a progressão, estaremos num espaço privilegiado para dar expressão ao nosso jogar.”
E exemplifica que o jogo entre linhas tem por objectivo “criar instabilidade” na defesa adversária, visando “desmontar” organizações defensivas. Que receber a bola dentro do “bloco” adversário torna-se desconcertante para quem defende. Que receber a bola entre os médios e os defesas “queima” os adversários de primeira linha. E, aos microfones, falam do “falso 9”, do “nove e meio”, do “fim do 10 clássico” - e mais não sei quê!
Ou seja, este conceito das entrelinhas é um relambório do ancestral “kick and rush”, toca e foge, passa e repassa, naqueles palmos que os clássicos da televisão a preto e branco descreviam como “terra de ninguém”, o popular “corre e desmarca-te” que os treinadores de antanho gritavam aos seus extremos. Quando ainda não era futebolisticamente incorreto dizer “extremos”. A desmarcação era a chave para a progressão, acelerava o jogo, mudava o ritmo e fazia jogar. Não me digam que “jogar entre linhas” é, tão só, fugir à marcação, porque acabei de queimar duas ou três linhas de neurónios a tentar perceber se me escapava alguma coisa.
Cheguei mesmo a imaginar um 4x0x3x0x3 como complemento esquemático ideal para o “fogo à peça” na palestra de um Fernando Cabrita dos nossos dias - o futebol desalinhado de sempre, mas agora com grau académico.

A seguir: F - Filosofia"

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