sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Cristiano Ronaldo, Ali Babá e os 40 ladrões


"As obsessões de infância não nos escapam facilmente. A memória é um carcereiro cruel, guarda as chaves desses dias com a diligência e o zelo de um relojoeiro.
Só isso pode explicar as imagens claras que guardo dos anos 80. Nomeadamente dos livros mais marcantes para mim dessa altura.
As intermináveis horas a devorar os álbuns de Astérix e Obélix, com romanos lingrinhas sovados página atrás de página; as gargalhadas provocadas por Rantaplan, o cão mais estúpido do Old West, nas aventuras mais rápidas do que a própria sombra de Lucky Luke; a velocidade imaginária de Michel Vaillant, em bólides de F1 nas ruas de Paris ou em rallys de dureza heróica, enfim, a lista é longa e maravilhosa.
Adormeci muitas noites também a folhear o conto de Ali Babá e os 40 Ladrões. Para quem não o conhece, o resumo é simples: um pobre lenhador árabe descobre, por mero acaso, uma caverna que serve de esconderijo a uma quadrilha de assaltantes. Segue-os e percebe que, por artes mágicas, a gruta se abre quando alguém grita ‘Abre-te, Sésamo!’.
Lá dentro, nas profundezas rochosas, jaz um interminável tesouro. Ali torna-se rico, mas o irmão, que o seguira, esquece as palavras-chave para entrar e sair da caverna, acabando por ser apanhado pelos gatunos.
Lembrei-me da beleza gráfica da história ao saber da ida de Cristiano Ronaldo para a Arábia. Não no encalço de ladrões, mas de um tesouro incontável, pelo menos na humilde perspetiva de um ser humano comum.
Cristiano passará de rico a estupidamente rico, e continuará a poder receber um Rolls Royce e um iate sempre que lhe apetecer.
É uma escolha legítima, compreensível aos olhos de quase todos, mas é uma escolha que acarreta consequências. Cristiano saberá disso melhor do que ninguém.
Tal como o pobre irmão de Ali Babá, Ronaldo será aprisionado. Estará rodeado por um futebol fraco, distante da elite e olhado de forma preconceituosa pela cultura eurocêntrica e ocidental. Vai afastar-se ainda mais do topo, por opção própria, e o que mais me interessa é perceber o que quererá ele, a partir de agora, da Seleção Nacional.
Cristiano, com 37 anos e a jogar no United, seria sempre uma unidade relevante – se percebesse e lhe explicassem olhos nos olhos o seu papel; Cristiano, de 37 anos e a competir na liga saudita, será, provavelmente, um empecilho.
O único motivo para Cristiano escolher o Al Nassr é a fortuna faraónica que o aguarda. Nada mais. Como diria Jerry Seinfeld, 'not that there's anything wrong with that'.
Insisto: é absolutamente legítimo da parte dele escolher este destino, como também é legítimo ao próximo selecionador nacional olhar com pouco entusiasmo para o mesmo.
Não vejo outra explicação, a não ser o vil metal.
Desportivamente, a liga saudita estará ao nível da II Liga portuguesa. Terá alguns projetos mais apelativos, sim, mas o nível médio é pobre, muito abaixo do que vale ainda hoje o futebolista Cristiano Ronaldo.
Socialmente, a família de CR7 viverá isolada numa gaiola dourada, mas dentro de um país cujas leis fundamentais permanecem agarradas a uma mentalidade própria da Idade Média e contrária aos mais básicos direitos humanos.
Cristiano falará publicamente na terça-feira e tecerá loas entusiasmadas ao projeto do Al Nassr e ao próprio futebol árabe, candidato a receber o Mundial de 2030 – e adversário da organização conjunta Portugal-Espanha. Os spin doctors tratarão de garantir isso.
O melhor português de sempre poderá ser feliz, fazer 50 golos por anos e vender milhões de camisolas no mundo árabe. Não poderá é continuar a reclamar um estatuto que já foi dele.
Está no seu direito."

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