domingo, 18 de dezembro de 2022

Com o Mundial de 2022, o negócio do futebol atinge a incongruência perfeita


"Como espectáculo, o futebol é uma maravilha que enleva multidões. Como negócio, é o exemplo mais acabado de todas as aldrabices e injustiças deste mundo. Só não vê quem não quer ver.

Comecemos pelo princípio; a Federation Internacional/Futebol Associacion (FIFA) foi fundada há 118 anos, em 1904, e inclui actualmente 211 federações nacionais (embora só existam 195 países...). Tal deve-se ao facto de reconhecer federações de territórios como Gales, Escócia ou das Ilhas Faroé — que têm cada uma as suas próprias seleções nacionais —, porque a confederação a que estão associadas (a UEFA, uma das 6 que fazem parte da FIFA) também reconhece.
A FIFA organiza o Campeonato do Mundo desde 1930 e o Campeonato Feminino desde 1991, além dos menos badalados torneios internacionais de futsal e futebol de praia. Não é tutelada por ninguém — portanto, não responde perante nenhuma entidade reguladora senão a si mesma — e as suas receitas vêm dos patrocínios. Para se ter uma ideia de magnitude, em 2018 teve receitas de 4,6 mil milhões de dólares e contava com 2,7 mil milhões de dólares de reservas.
Recuemos um pouco: os jogos em que se chutam bolas são velhos como a humanidade, mas o futebol moderno começou a ser praticado pelas universidades de elite inglesas e formalizado em 1863 — as chamadas “regras de Cambridge” — de modo a que pudessem jogar umas com as outras.
Os ingleses exportaram o futebol para todo o mundo. Em Portugal, por exemplo, o primeiro jogo ocorreu na Madeira, em 1875, organizado por um inglês que trouxa a bola da Grã-Bretanha. Em Lisboa, foram os irmãos Pinto Basto que lançaram a moda, em 1888.
O jogo era praticado por amadores, evidentemente, com o privilégio das classes altas, juntamente com outros sports, como o ténis, equitação, etc. Mas foi despertando o interesse dos “have nots”, formaram-se inúmeros clubes e surgiram equipas em associações populares.
Não há uma data determinante em que tenha passado do amadorismo para o profissionalismo. Os jogadores mais competentes e menos abonados começaram a ser pagos sub-repticiamente; a questão teve de ser encarada publicamente em 1884, quando a federação inglesa expulsou dois clubes por pagarem aos jogadores. O choque devia-se ao facto dos reguladores do desporto quererem mantê-lo amador e elitista, apenas acessível a quem não precisasse de ser pago para jogar. As mudanças laborais e industriais e a popularidade do futebol forçaram os segmentos aristocráticos e endinheirados a largar mão do controlo sobre a modalidade e permitir a profissionalização.
No final do século XIX, lá como cá, tornou-se necessário criar empresas futebolísticas para gerir a posse dos terrenos dos estádios, ao mesmo tempo que os treinadores, tendo que dedicar muito tempo ao passatempo, também passaram a receber ordenados. Quem pagava tudo isto eram as quotas dos adeptos.
O futebol era mesmo um desporto, praticado por quem gostava de jogar e sustentado por quem gostava de ver. Até que, fatidicamente — ou não, dependendo do ponto de vista — chegou a uma escala em que o amadorismo na gestão e na prática se tornaram impossíveis.
Em Portugal, tudo mudou em 1997, o ano em que foi publicada a lei que cria a figura jurídica “Sociedade Anónima Desportiva”. Os clubes que formaram SAD’s passaram a ser empresas de capital aberto, sendo as decisões diluídas entre os administradores e acionistas da empresa/clube, podemos dizer assim.
Em 2013, foi passada uma lei que essencialmente obriga os clubes nacionais a formarem SAD’s ou SDUQ’s (Sociedade Desportiva Unipessoal por Quotas, onde a titularidade do capital social pertence em exclusivo ao clube fundador) para poderem participar nas competições nacionais.
O caso não é grave quando o controlo da SAD está nas mãos do clube, isto é, quando o clube — e, por consequência, os seus sócios — tem mais de 51% do capital social, pois aí mantém-se soberano na gestão. No entanto, quando a SAD é controlada sobretudo por investidores, a situação muda de figura, pois cria-se um novo segmento dentro do clube que tem autonomia nas suas tomadas de decisão. O sócio deixa de ter o poder de voto como antes e as decisões do futebol do clube passam a ser dos acionistas. Com isso, as atitudes começam a seguir caminhos questionáveis e outros rumos não imaginados, como qualquer outra empresa, como aconteceu no caso do Belenenses e noutros emblemas históricos.
E assim o futebol deixou de ser um desporto, para passar a ser um negócio e um espectáculo.
1997 foi uma data marcante em Portugal, mas já há anteriormente o jogo tinha-se profissionalizado noutros países, e nunca mais deixou de sê-lo. Esta situação, acompanhada pela internacionalização de capitais e bens, levou a duas situações no mínimo estranhas: primeiro, os clubes passaram a ter donos que não eram da mesma nacionalidade e muitas vezes usavam o negócio como lavagem de dinheiro. Ficou famoso, entre muitos outros casos, o de Roman Abramovitch, o oligarca russo que comprou o Chelsea em 2003 (e só vendeu porque foi obrigado pelas sanções derivadas da Guerra na Ucrânia). Mas se formos ver a lista de proprietários dos clubes ingleses, por exemplo, a maioria são americanos, árabes e chineses! O Paris Saint-Germain, para dar um exemplo francês, pertence ao Qatar Sports Investments, que por sua vez pertence ao fundo estatal Qatar Investment Authority. Ou seja, na verdade pertence ao Sheikh Tamim bin Hamad Al Thani, emir do Qatar.
A segunda situação estranha (à falta de melhor palavra) é que nem todos os treinadores e jogadores das seleções nacionais nasceram no país que representam. Os treinadores não precisam de pertencer, pelas regras da FIFA. Quanto aos jogadores, podem naturalizar-se caso não tenham jogado pela sua seleção de origem — o que para muitos, nascidos em países de fome, representa um upgrade muito vantajoso.
Chegamos assim à situação surreal em que as seleções nacionais não são constituídas por jogadores ou técnicos desses países. Dependem exclusivamente da capacidade financeira das federações nacionais, ou dos clubes, para os captarem.
Voltemos agora à FIFA. Num negócio sem supervisão jurídica de nenhum órgão internacional e que mexe com zilhões de dólares — não só os patrocínios como também as transferências de jogadores e a escolha dos países organizadores — são inevitáveis as jogadas, os favores, enfim, a corrupção de todos os tipos. Basta ver que a quantidade de presidentes e vice-presidentes da organização que foram acusados de receber dinheiro e favores por fora. Alguns, como Sepp Blatter, conseguiram ser absolvidos perante a justiça por falta de provas. (Como se sabe, o mais difícil nos casos de corrupção é a necessidade do corruptor activo admitir culpa...) Mas houve ouros, como Reynaldo Vasquez, João Havelange e Chuck Blazer, que não conseguiram escapar. Ao todo, mais de 24 quadros superiores da FIFA foram acusados.
A escolha do país que organiza o campeonato é uma das decisões mais suspeitas, como foi o caso da Rússia em 2018 e, mais evidentemente, o Qatar este ano. Até Eva Kaili, vice-presidente do Parlamento Europeu, é suspeita de ter sido corrompida pela Qatar. Nunca se saberá a teia de pagamentos, compromissos e favores que levaram à escolha dum país que não tem nenhuma, mas mesmo nenhuma, razão para ser escolhido. O clima, a falta de estruturas, a ausência de tradição futebolística, o desprezo pelos direitos humanos, a humilhação das mulheres... a lista é interminável.
Só mesmo os fundos inesgotáveis do petróleo e a máquina de corrupção que o negócio de futebol se tornou justificam esta escolha.
E, por falar em Qatar, chegamos ao aspecto mais surreal a que o espectáculo chegou: não havendo adeptos dos países participantes para encher os faraónicos estádios, quer-me parecer que o Emirado pagou aos escravos que construíram esses estádios para os encherem durante os jogos. Uma promoção para eles, com certeza; depois de receberem uma miséria para amassar cimento, recebem uma miséria e mais uma camisola para assistir aos jogos e torcer por países de que mal ouviram falar.
E chegamos assim, simbolicamente, ao supra-sumo das aparências: equipes nacionais constituídas por estrangeiros, aplaudidas por claques que também não pertencem aos países que apoiam. Nos camarotes VVIP (uma nova classificação, acima de VIP) os ricos e poderosos têm ao seu dispor alta cozinha, champanhe à vontade e até quartos nas traseiras para comemorar intimamente os golos dos seus clubes, enquanto os fãs são alojados em tendas e contentores.
Não há dúvidas que chegamos ao epítome da civilização: nada é o que parece, as convicções são apenas um espectáculo, e a diferença entre muito ricos e muito pobres é a maior desde que o homem descobriu o fogo.
Se alguma vez formos visitados por uma civilização inteligente (tipo, os vulcanos) como é que lhes vamos explicar isto?"

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