sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Carta de João Malheiro a Eusébio


"Meu querido amigo:
As saudades são tantas, tantas mesmo. Que falta fazes aqui! Com o teu carisma magnético, com a tua experiência, com as tuas opiniões.
O nosso Benfica está bem, vive um grande momento, depois de um já longo pesadelo. Imagina que está há 27 jogos consecutivos sem perder! Nem no teu tempo houve igual registo. Ainda nada ganhámos, mas estamos no bom caminho. O treinador é excelente, a equipa consistente e talentosa, os adeptos estão felizes. E, claro, o presidente é o Rui Costa, que foi treinado por ti nos infantis do Benfica. Sei o orgulho que sentes, quando vez um ex-jogador na cadeira da presidencial. Sempre me disseste que um dos pecados do futebol era haver dirigentes que percebiam pouco, que dirigiam clubes como se de empresas normais se tratassem.
Agora, estamos em tempo de Mundial. Depois da espetacular vitória sobre a Suiça, temos Marrocos nos quartos de final. Em 66, foi a Coreia do Norte, naquele jogo épico que resultou na maior reviravolta de sempre, com quatro golos da tua autoria.
Nem de propósito, sabes que ainda és tu, desde a década de 60, o recordista de remates enquadrados à baliza? Foram 9 com os coreanos. Pode dizer-se que tinham pouca expressão futebolística, apesar de terem eliminado a Itália ainda na fase de grupos. Pois bem, na lista, aparece o grande Maradona, com 8 remates. E sabes quem é o terceiro? Outra vez tu, mercê dos 7 remates frente ao Brasil, que era bicampeão mundial.
Outra coisa que se vai dizendo é que, no decurso da tua carreira, Portugal só foi a uma fase final de um Mundial. Acaso saberão que, nesses tempos, apenas 16 equipas disputavam o certame e só 8 o Europeu? Apenas o primeiro classificado na fase de qualificação era apurado. Se continuasse assim, este ano, por exemplo, não estavamos no Qatar, porque ficámos atrás da Sérvia. Tu sorris? Eu entendo. É que também nunca jogaste contra Andorra, Gibraltar, Liechtenstein ou quejandos.
Outra coisa irritante são as comparações, sobretudo entre ti e o também nosso Cristiano Ronaldo. Já nem falo do recorde de golos na Selecção. Tu fizeste um Mundial e marcaste 9, o Ronaldo vai no quinto e contabiliza 8. Sei que, por ti, até porque te conheço bem, gostarias que o Cristiano Ronaldo marcasse mais golos, escrevo no plural, a bem das insígnias que defendeste com devoção quase evangélica. Tal como estiveste, carregado de orgulho, em cerimónias de consagração do Ronaldo com Bolas ou Botas de Ouro, até na apresentação dele no Real Madrid. Como fizeste com o Gomes e o Figo, sempre com o teu abraço amigo, para já não falar da enorme amizade que cultivaste com o Yazalde.
Mas, meu caro, deixa-me dizer, mesmo que não queiras: a tua média de golos, na Seleção é superior à do Ronaldo, para não falar do Pauleta.
E lembro as sete (!) operações que fizeste aos joelhos, as vezes que jogaste infiltrado (quanto deves ter sofrido!), só para o Benfica e a Seleção dilatarem o cachê, para já não falar da bola que não era impermeável, dos pelados, de treinos desajustados, de assistência médica insuficiente. Hoje fico por aqui, certo de que, nesta altura, torces muito por Portugal, esperando que possa chegar à final e ultrapassar a magnífica epopeia de 66.
Sei que a tua família está bem. Os teus netos, então, cresceram tanto e estão muito bonitos. Os melhores amigos falam sempre em ti. O Hilário vai andando, embora apareça poucas vezes. Sei quanto sofreste, ultimamente, com as despedidas do Chalana, do Gomes, do Jordão. A vida, por vezes, é cruel.
Este teu amigo pensa em ti todos os dias ou não fosses o meu ídolo e o maior herói popular do século XX português.
Com tanta gratidão quanto tanta saudade.
João Malheiro"."

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