terça-feira, 8 de novembro de 2022

António Silva, o portuguesíssimo


"Fez 19 anos há uma semana, tem o nome mais português que há e marcou dois golos no atropelamento (1-5) e fuga do Benfica do Estoril, incluindo um de calcanhar num canto que teve outro toque de calcanhar antes. O defesa central António Silva é, também, o mais inesperado dos sustentos da equipa de Roger Schmidt que segue imparável e sem derrotas esta época

Estoril fica a um tiro rodoviário de Lisboa, sem trânsito então e se optar pela autoestrada a viagem é um ápice e esta introdução não é para aconselhar roteiros de fim de semana, mas visa lembrar a proximidade à capital que pode favorecer o clube pacato, modesto e amarelo que beija o mar de perto quando, nas negociatas que se endereçam a pessoas como mercadorias, olha para quem está, ou já esteve, ligado a um dito grande lisboeta.
Tenha, ou não, a vizinhança geográfica sido posta ao barulho para seduzir um novo treinador, o clube, para enfrentar esta época, fez-se com Nélson Veríssimo, homem que aguentou o leme do Benfica no desfecho da temporada anterior e refrescou a sua comuta diária para limar uma equipa do Estoril atrevidota na forma como pretende sair da sua área, paciente no início das jogadas em passe curto e disposta a usar o guarda-redes a preceito para farejar vantagens numéricas contra adversários que a pressionem.
Na boa ousadia haverá algo a provar para o treinador que, pela primeira vez na carreira, saiu debaixo da companhia marsupial do clube que o visita. É com essa ousadia nas zonas onde as jogadas se constroem e afinco a tentar que sejam os centrais, Otamendi e António Silva, a ter protagonismo forçado com bola - pressionando-os de fora para dentro e fechando linhas no meio-campo - que recebe o Benfica, incomodando-o com outro foragido a futebóis de Lisboa. Já depois de uma diagonal curta de Rafa por detrás de Musa que o croata serve para o português rematar, Francisco Geraldes aparece.
O jogador-poeta, obra publicada e tudo, espalha a ambidestria moribunda por toda a largura do campo e nota-se que é livre de o fazer, pedindo uma tabela aqui, segurando a bola acolá e arriscando uma receção orientada nas barbas de Enzo, à entrada do meio-campo. O médio de futebol criativo no corpo e do mais anti-futebol que por cá há na pessoa fugiu ao argentino lançou Rodrigo Martins com estilo, para o extremo não ultrapassar Vlachodimos. Depois, num canto batido também por ele, Erison cabeceou a bola que só não entrou porque Petar Musa, no desespero bombeiro em cima da linha, a rematou contra a barra.
Entre estes dois momentos couberam uns 20 minutos em que o Estoril, com menos bola e presença territorial na metade de relva do Benfica, discutiu o jogo, aproximou-se da área contrária e atraiu a pressão sem medos. Mas, nesse período, o avançado croata pareceu frenar-se no ar para cabecear um golo (25’) e António Silva juntou à raridade da sua precocidade uma outra, num canto em que Chiquinho desviou a bola de calcanhar para ele a rematar também com essa parte do pé (30’) para outro golo. No mesmo ápice que demora a ir de carro dali à capital, o Estoril sofria com a eficácia alheia.
O Benfica ainda soluçou um pouco no quarto de hora inicial, gripando ao de leve o carburado motor que o mantém a acelerar esta época, mas, quando Chiquinho, Rafa e João Mário se acercaram com constância uns dos outros, combinando com poucos toques e respeitando sem dúvidas a simplicidade de jogar com quem está virado para a baliza e o conceito do terceiro homem (dois jogadores combinam passes para soltarem esse outro que se movimenta).
Antes do intervalo, ainda chegaria ao 0-3 e de novo graças ao aproveitamento de outro momento no qual abusou na eficácia no tiro de partida da época, mas do qual era carente nos últimos tempos: novo canto, este batido com dois jogadores perto da bandeirola e a bola passada a Rafa, à entrada da área, para o cruzamento ser curvado rumo ao segundo poste, Florentino o desviar para o outro e o mais português dos nomes e apelidos marcar, outra vez.
António e Silva são dos identificadores de pessoa mais comuns cá do burgo, tão nacionais, tão cheios de costeletas do que soam a português, ei-lo com 19 anos feitos há uma semana e igualmente tão cheio de defesa central dentro dele. A segunda parte, nisso, foi gémea da primeira, com o moço de Penalva do Castelo a passear tanta certeza no posicionamento, na leitura profética das intenções dos adversários e nas interceções de bolas que são um inesperado sustento de uma equipa que também favorece ao seu conforto.
Porque o Benfica, mesmo tirando Rafa e movendo outras peças com o tempo, encetou mais ainda o seu avassalador formato de futebol desta época. Ligou jogadas sem esforço, acelerou a sua dinâmica de passes simples, sustentou-se nas recuperações em zonas altas do campo de Enzo e Florentino e navegou com o vento da confiança em popa nas velas de todos os jogadores que Roger Schmidt treina. Aos golos de João Mário, na área (67’), e de Mihailo Ristic, à bomba e longe dela (89’), num bruto e missílesco pontapé, ainda houve um remate ao poste de Musa e um remate anulado de Henrique Araújo num canto.
O 23.º jogo feito pelos encarnados esta temporada e o vigésimo terceiro sem perder concedeu, ainda, um golo nos descontos ao Estoril, brotado de uma perda de bola de Enzo que os anfitriões prontamente mastigaram para lançar Pedrinho na área. O avançado João Carlos ainda rematou outra ao poste, um tardio espernear de vivacidade de um Estoril assolado pelas horas e quilómetros virtuais que o separam deste Benfica que se vai aportuguesando o seu domínio interno ao galopar nesta dinâmica imparável.
O Mundial está prestes a vir a baralhar tudo com uma pausa e veremos se um dos viajantes para o Catar não o mais português dos nomes que tem no plantel."

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