quinta-feira, 10 de novembro de 2022

António Silva e a ambiguidade de aparecer tão cedo


"A precocidade no futebol ser encarada de esguelha é chavão não escrito. Visto bem o histórico desmiolado de quem ferve com a bola, uma prova flagrante de incoerência. É uma verdade da humanidade que vivalma nasce ensinada, que só aprendemos errando e que sem desconforto nas tarefas fica árduo evoluirmos, mas, a cada aparecimento de um caçula atolado em potencial e cheio de talento anormal para a idade, é uma questão de tempo até ser escancarada a ambiguidade quadrada desta modalidade que chuta numa bola redonda.
Não é, de todo, normal um adolescente galgar dois ou três degraus a cada passada que trepa a escadaria da carreira e, antes de fechar o percurso enquanto júnior, estar a coabitar entre os pontapés dados por adultos. Quando um novato irrompe, à bruta, com o seu talento numa equipa sénior e cedo se cola como titular, somos todos rápidos a elogiar-lhe a capacidade, a destacar-lhe as valias já tão boas para a idade e a inflacionar-lhe as previsões de carreira com base no pouco que ele já mostrou. Depois, às primeiras falhas da relação com o erro que todo, mas todo o futebolista tem, o gatilho fácil e nervoso das críticas é logo premido sem vergonhas.
E o jovem prodígio vira o jovem precipitado, de prometedor passa a inexperiente e do pedestal de barro onde o elevaram com o perigo das expectativas cai, aos trambolhões e também desproporcionalmente, para o piso térreo da falta de noção em não se ter em conta de que cedo, rápido e bem, há poucos que o façam. O tão português que é António Silva, ainda mais portuguesíssimo se lermos a coleção de nomes tão de cá que tem em António João Pereira Albuquerque Tavares Silva, é o mais recente projeto de futebolista posto a jeito deste escrutínio moderno e impaciente do futebol, que exige resultados para ontem.
Ele deveria estar a limar-se na transição de júnior para sénior. No verão tinha apenas quatro jogos no escalão adulto do Benfica B, começou a treinar com a equipa principal e a sorte sem a qual ninguém é alguém no futebol, mais um treinador vindo de fora sem pudores, escancarou-lhe uma oportunidade - quando três dos seis defesas centrais estavam lesionados, Roger Schmidt escolheu o desbarbado adolescente para ter ao lado de um Otamendi que quase o dobra na idade.
A maioria do resto que temo visto é culpa de António Silva.
É extremamente anormal um defesa central de 19 anos feitos há uma semana ter a noção posicional, o timing de abordagem à bola e a postura corporal nos duelos que o português já exibe; mais incomum é a calma que aparenta em todas as ações, na escolha da opção mais simples quanto tem a bola (os passes rasteiros que coloca nos jogadores que estão mais longe), e a concentração que é capaz de manter fechada no seu cofre e que, dizia o treinador alemão no domingo, já teve de testar contra “jogadores e equipas top” esta época. Os dois golos feitos ao Estoril, não sendo o esteio da sua labuta, servem para reforçar outra conversa pelo mediatismo do feito.
Não por culpa dele, mas da inoperância alheia em acautelar um azar que não era assim tão imprevisível, António Silva e as suas 19 primaveras na Terra estão a ser faladas como potenciais merecedoras de uma convocatória para o Mundial, já que Portugal está carente de opções a defesa central que tenham sido experimentadas e nutridas, com tempo, para quando chegasse este dia tão adiado. Teria sido normal que já tivesse chegado. Essa carência explica-se, em parte, pela magnânima samba na cara do tempo que Pepe dá, há muito, esticando o nível de excelência até aos quase 40 anos e escusando quem se quisesse escusar a acautelar alternativas para o centro da defesa da seleção nacional.
Na última década, é verdade que Portugal não tem cultivado colheitas que lhe deem centrais do nível do capitão do FC Porto (à exceção de Rúben Dias), mas, havendo Pepe a desafiar barreiras temporais, Fernando Santos não foi testando jogadores em partidas de exigência na posição, redundando-se em confiar no também quase quarentão José Fonte até uma adaptação de Danilo Pereira a central, no PSG, se alinhar com as necessidades do selecionador. Repetindo, é verdade que o selecionador não teve farta matéria-prima ao dispor, mas é também por isto que um tão verde António Silva, nem com meia época de sénior a titular, está a ser matutado para entrar nas escolhas que serão anunciadas esta quinta-feira, pelas 17h30.
Um António de outros tempos, quando havia uma noite para passar, cantava que “tu estás livre e eu estou livre” para sucintamente justificar uma união e a junção deste defesa central à seleção nacional que viajará para o Mundial do Catar não chocará devido ao referido contexto. António Silva pode ainda não ser tudo o que lhe pintam, mas o que mais o favorecerá nos próximos tempos é a aceitação de que ele vai errar e falhar e, em princípio, crescer. Que a precipitação em inflacionar elogios não seja um precipício de críticas quando esses momentos aparecerem, como o ambíguo futebol já tanto vez com tantos outros."

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