sábado, 12 de novembro de 2022

Ali Baba e os 26 Sultões


"Um Mundial, ainda mais o primeiro Mundial alérgico à universalidade arco-íris e organizado por um sindicato de rufias e marialvas misóginos, traz-me a nostalgia da pureza e ingenuidade a preto e branco de 1966, ano do meu primeiro Campeonato e do meu primeiro filme. Foi a descoberta da magia do futebol e da grandeza e diversidade do mundo, com o meu pai e irmãos na casa de um vizinho, meses antes de estrearmos a nossa própria televisão. E, tal como a montanha russa de emoções do Portugal-Coreia, os socos no ar que Eusébio dava a cada golo heróico ou o desgosto inconsolável pela derrota de Wembley, também nunca me esqueci do filme que passou naquela tarde de domingo após ver pela primeira vez a mira técnica da RTP transformar-se em encadeadas imagens graníticas: “Ali Baba e os 40 ladrões”, passado em torno de uma gruta preciosa no deserto arábico, numa descoberta do exotismo do Médio Oriente e do feitiço do olhar da minha primeira princesa das mil e uma noites.
Parecia um ‘déjà vu’ quando Fernando Santos desfiou o inventário dos 26 que leva à conquista dos palácios climatizados do deserto do Catar. Quando em Roma sejamos romanos, “Ali Baba e os 26 Sultões”, de tão poderosos e abastados serem os nossos príncipes da bola, podia adoptar-se como um daqueles títulos idiotas com que, na pré-história do marketing desportivo, se baptizava a “equipa de todos nós” de Magriços, Infantes, Conquistadores e mais não sei quantos cognomes de aventureiros inglórios em cruzadas da bola.
Entre o sonho e a realidade, dou por mim a pensar que nos tempos modernos já haverá mais quem associe Alibaba à maior plataforma de comércio digital do mundo e menos ao príncipe nobre e corajoso que combatia os usurpadores e se babava pela donzela de cara tapada. Tal como um futebol mercantil, canalha e explorador dos pobres do terceiro mundo, para gáudio e opulência dos seus Emires e Maliks de mãos sujas de petróleo e sangue, tentando usurpar a minha visão encantada dos cavaleiros da Ordem de Cristiano, gritando “Abre-te Sésamo” às balizas do adversário.
Mas, ao contrário de muitos que ameaçam boicotar o evento maldito da FIFA, eu ainda me rendo mais uma vez à pureza do futebol, às reviangas e aos balázios, às tácticas e aos improvisos, mesmo às entrelinhas e às basculações, pronto a ganhar e a emocionar-me.
Os 26 de Portugal são os meus 26 e os de quase toda a gente - era impossível falhar o consenso desta lista tão alargada num país tão pequeno.
Assim os 11 também possam ser os nossos 11, decididos a atacar por todos os lados, enxutos e organizados, com inteligência e determinação, em seus tapetes voadores sobre as fortalezas do Gana, do Uruguai e da Coreia. Assim o nosso Ali Baba da FEMACOSA, numa trégua das preocupações com os vizires da Autoridade Tributária, se meta em brios e os prepare táctica e mentalmente, “na realidade”, para a conquista da pepita dourada nas grutas de Doha.
Não há mais margem para calculismos, taticismos ou encomendas às virgens de Bagdad - apenas três desejos para esfregar nas botas dos génios do nosso contentamento: coragem, entrega e fantasia futebolística, ataque, ataque, ataque, dentro dos padrões de nobreza e ambição de um jogo positivo e espectacular. E como festejo de cada golo, de cada vitória, de cada final feliz, uma homenagem contra o esquecimento das vítimas dos califas do futebol mundial."

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