sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Aconteceu Taça, mas não só


"E de repente, quando uma série de equipas da primeira liga são eliminadas por outras tantas do terceiro escalão, vamos em busca das razões que o explicam. Duas são rapidamente apontadas: a perda de capacidade de investimento dos emblemas do principal campeonato ao longo dos últimos anos e a qualidade acrescida com que se trabalha hoje nas divisões inferiores. E se a última é verdadeira, com claro aumento de competitividade também garantido pelo modelo de sucesso que tem sido a Liga 3, a primeira é não só profundamente discutível (e até falsa, quanto aos primeiros da tabela) como só por manifesta falta de pudor pode ser invocada – como bem reconheceu Rúben Amorim após a humilhante derrota com o Varzim –, já que não há um mínimo de comparação possível entre a qualidade individual disponível (até no banco!) de Sporting, Boavista, Chaves, Paços de Ferreira, Portimonense, Santa Clara ou Marítimo e qualquer dos opositores que defrontaram e com quem perderam. Naturalmente, cada jogo é um jogo e toda a generalização é perigosa, mas há um traço essencial que não pode ser ignorado. E tem sido. Falo da qualidade de jogo, o elefante no meio da sala que não se discute, seja por facilitismo ou ignorância.
O caminho mais fácil é sempre o do mensurável e por isso o debate sobre a evolução do jogo – em Portugal mas não só - tem sido lançado em redor de dois temas: a participação do VAR e, mais recentemente, o tempo útil de jogo. Sempre o que se pode medir, sejam os centímetros do fora de jogo ou os minutos de tempo perdido. O VAR, que ainda acredito ter mais virtudes que problemas, nasceu para proteger uma classe – a dos árbitros – mas enrolou-os num emaranhado em que até os especialistas divergem permanentemente, com atualizações de interpretações que transformaram a análise de uma mão na bola ou bola na mão numa tese de doutoramento. Quantos de nós hoje sabem, efetivamente, se deve ser marcado penalti quando um defesa é simplesmente atingido pela bola num dos membros superiores? E é diferente se for no avançado? Ou nesse caso mantém-se o absurdo de ser sempre falta, mesmo perante um toque totalmente inadvertido e inevitável? Às vezes é preciso lembrar que boa parte do sucesso de futebol se deveu à simplicidade das suas leis, que qualquer criança pode aprender a partir dos 4 anos. Além de que o mais importante do jogo não é cada decisão do árbitro, mas o que acontece entre elas, o jogo ele mesmo. Do mesmo modo, o tempo útil – que faz sentido discutir – só é útil de facto se as equipas quiserem jogar, seja antes ou após os 90 minutos. Muitas vezes a qualidade é tão má que só há compensações de tempo… inútil.
Toni Kroos, que responde como joga, com inteligência acima da média, respondeu há dias a um questionário publicado pelo El País, a propósito do futuro do jogo “Se penso nos próximos 10, 15 anos, vejo-os com preocupação. Os clubes estão em busca de jogadores de outro perfil. Perguntam: É veloz? É grande? É forte? E só depois perguntam: sabe tocar na bola?”. O problema é o mesmo: a quantidade, o que se pode medir e transformar em gráficos, tem anulado o debate sobre a qualidade. Ou a falta dela. Não se avança sem discutir mais o jogo, os modelos táticos e sobretudo as intenções. Quem não valoriza um futebol positivo, de iniciativa, não pode aplicá-lo sem mais, só porque naquele dia dava jeito. Quantas equipas em Portugal apostam verdadeiramente no processo ofensivo e quantas demonstram qualidade efetiva nos momentos com bola? Os quatro mais ricos, claro, mesmo se com variantes óbvias - e mau seria que assim não fosse, tal a superioridade de argumentos - e quantos mais? Alguma coisa no Estoril, no Chaves, ainda no Vizela, embora menos audaz que antes. E o resto? A esmagadora maioria organiza-se atrás e sai rápido para o contra-ataque. A competência no processo defensivo é naturalmente diversa, nalguns casos até muito elogiável, mas o perfil de jogo repete-se. Um dia há Taça e é o adversário que se organiza atrás para sair rápido. E aí as respostas treinadas não respondem às novas perguntas que o jogo coloca. Some-se a isso alguma rotação de jogadores (mais homens com menos ritmo) e um natural relaxamento frente aos teoricamente mais frágeis e acontece taça, como se diz desde que me lembro. Não se negue nesses momentos o mérito dos “pequenos”, que por uma vez ganham, mas anote-se o ainda maior demérito das equipas “maiores”, que inesperadamente perdem. Foram oito, só desta vez. Dá que pensar."

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