quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Lápis verde


"Que o clube ainda não tenha retirado a “queixinha”, desautorizado o seu informador/delegado e pedido desculpa à jornalista (aliás, a todos os jornalistas) é totalitário e perigosamente antidemocrático

Em apenas três minutos Rita Latas arriscou causar mossa à sua carreira como jornalista da Sport TV por ter feito o seu trabalho, vendo-se a braços com um processo disciplinar instaurado pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) que podia conduzir à aplicação de uma sanção, que começa na repreensão, passa pela multa e pode chegar à suspensão. Desses três minutos, só os últimos dez segundos é que interessam, quando a jornalista pede a Ruben Amorim que comente as declarações de Slimani.
Quem viu a “flash interview” em directo não terá achado que algo de anormal acabara de acontecer, nem quanto ao teor da pergunta, nem quanto à resposta do treinador. Todavia, um longíssimo regulamento da FPF (Regulamento das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional) determina no seu art.º 91.º que a entrevista rápida tem a duração máxima de 90 segundos, versando exclusivamente “sobre as ocorrências do jogo”.
O delegado do Sporting não gostou “da lata” da jornalista e fez questão que o delegado da Liga registasse no relatório de jogo que Rita Latas tinha violado as normas da competição, o que desencadeou o processo disciplinar. Esta “queixinha” do clube de Lisboa é própria dos antigos informadores da polícia politica. Este incómodo do delegado do Sporting é evitável e tolo, tanto mais que Ruben Amorim foi na conferência de imprensa que se seguiu ao jogo questionado sobre o mesmo assunto, que sempre lhe seria impossível evitar.
Este incidente é, no mínimo, ridículo. Não obstante, o assunto entrou na agenda mediática e levou a sensatas, óbvias e fortes tomadas de posição por parte de jornalistas, sindicatos, juristas e até pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e pelo Ministro que tutela a comunicação social. Fruto destas pressões, a FPF veio, entretanto, corrigir a mão e anunciar que, afinal, não “pondera sancionar a jornalista”.
Parece que a história vai ter um final feliz. Talvez não seja exactamente assim: é que a FPF não anunciou que vai desistir de instaurar um processo disciplinar contra a jornalista; antes comunicou, levando o caso ao absurdo, que vai iniciar e instruir um processo disciplinar urgente para não punir ninguém… Com a decisão final já previamente anunciada, é só mais um ridículo a somar aos demais.
Um processo disciplinar não é o sítio certo para “testar” a constitucionalidade de uma norma de um regulamento de uma competição desportiva, e, fosse o caso, a resposta é evidente: é claro que a regra é inconstitucional e ilegal!
Os jornalistas, atenta a importância da sua função numa sociedade democrática, gozam de protecção da Constituição e da lei (nomeadamente da Lei da Imprensa), não só se tutelando a sua liberdade geral de expressão e de opinião como, especificamente, a liberdade de expressão e de criação jornalística, o que implica, entre outros, independência no exercício da sua actividade e livre acesso às fontes de informação.
É elementar que um jornalista possa perguntar o que bem entender sem quaisquer impedimentos ou discriminações.
Que o regulamento de uma competição desportiva tente derrogar a lei e a Constituição, criando impedimentos à liberdade de imprensa é, infelizmente, resultado da forma como as competições desportivas são organizadas, designadamente das interdependências (também financeiras) que se estabelecem entre os operadores televisivos titulares dos direitos de transmissão e o mundo do futebol. Que o delegado de um clube tente censurar uma jornalista, procurando-a usar como exemplo para todos os outros, é coisa grave e de tempos já idos ou de outras latitudes.
Que o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol sequer alimente esta possibilidade demonstra bem o quão necessário é, diariamente, defender o jornalismo e os jornalistas, que é o mesmo, na verdade, que defender o direito de todos nós a sermos bem informados.
Que o clube de Lisboa ainda não tenha retirado a “queixinha”, desautorizado o seu informador/delegado e pedido desculpa à jornalista (aliás, a todos os jornalistas) é totalitário e perigosamente antidemocrático."

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