sábado, 27 de agosto de 2022

Que bons que somos a varrer os outros, está sempre tudo pronto para apontar o dedo e disparar


"Partindo de uma experiência de perda pessoal, (...) escreve sobre como tanta gente no futebol parece apressar-se a fazer juízos de valor "sobre este e aquele" como se "tudo aquilo que a televisão dispara para as nossas salas de estar fossem suficientes para definir caráter, esquecer carreiras ou distribuir sentenças"

Há uns anos, quando era apenas um jovem árbitro de futebol, recebi uma notícia muito perturbadora no preciso momento em que me preparava para viajar, em trabalho, para os Açores: soube da morte de uma pessoa que me era próxima.
Uma pessoa com idade, mas de quem gostava muito e com quem passava parte do meu tempo. Era aquela relação de carinho e respeito que se tem pelos mais velhos e que não se explica. Sente-se.
Quando o coração dela desistiu de bater, o meu gelou. Sabia que a idade não perdoava, mas não estava preparado para enfrentar aquele momento. Não assim, tão de repente, sem sequer considerar essa possibilidade. Confesso, foram momentos difíceis de digerir e aceitar, porque a ligação era forte.
Decidi que queria fazer a viagem à mesma.
Há, nessas alturas, algo que nos impele a manter os planos, a querer seguir em frente. É como se quem parte nos sussurrasse ao ouvido que não podemos desistir, que não podemos parar.
Como perceberão, não tenho grande memória desse fim de semana. Sei que o jogo era da II Liga (em casa do CD Santa Clara), mas não me recordo de quase nada do que aconteceu em campo.
Lembro-me apenas de estar acompanhado por uma equipa fantástica, com malta amiga (os tais que serão sempre amigos do peito), que puxou muito por mim. Não me largou um segundo, não me deixou cair no desânimo, não me deu tempo para sentir. Manteve-me firme e seguro. Estava um caco por dentro, mas fingia brilhar por fora. Por mim e por eles. Porque, nestas alturas, não basta ser. É preciso parecer.
Hoje sei que estive em campo sem estar.
Liguei o piloto automático e só me lembro de obrigar-me a honrar a memória daquela senhora fantástica, dando tudo o que tinha e não tinha. Dando o melhor de mim. Não sei como consegui fazer aqueles 90 minutos.
Não sei onde arranjei força para me concentrar, para focar no essencial, para fazer o que tinha que ser feito... mas consegui. Acho que há momentos nas nossas vidas em que chegamos ao destino sem saber como cumprimos o trajeto."

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