quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Quando se queima o pão para toda a obra


"Culpado me considero por o ter lá em casa a decorar uma estante e ser um amparador de pó. Há livros em que pegamos e manuseamos, nos quais fitamos o lombo ensanduichado entre outros exemplares, que vêm atrelados a nós em mudanças de poiso e só depois lhes deitamos a vista com olhos de ler, às vezes anos depois de serem nossa posse. O bom das palavras escritas a tinta em página branca é serem imunes a validade, nos livros não há prazos por mais que carcomidas pelo tempo fiquem as páginas e chegará o dia para a autobiografia de Alex Ferguson ser devorada.
A memória de um livro que aguarda pelo seu dia não serve para comparar o lendário treinador escocês, contador de 27 épocas no Manchester United, colecionador de Ligas dos Campeões, títulos ingleses e de dezenas de jogadores forjados para um nível sublime, com um hoje seu par, que nem sequer era futebolista sénior quando Ferguson, rendido à fortuna, viu a sua equipa virar uma final europeia nos descontos (1999). Salvas as descomunais distinções, o paralelismo deve-se às raízes que assumiram nos respetivos clubes por serem como são.
É uma não notícia lembrar que Rúben Amorim é um carismático orador. Cedo se constatou o dom do treinador para falar perante câmaras, microfones e ouvidos sedentos de adeptos e não só, a faladura que desbobina semanalmente no país onde o futebol tem direito a megafones mostra-o, há mais de três anos. Tem uma aptidão de desembrulhar qualquer resposta que lhe peçam com ponderação, sensatez e abertura que, além de raras, são anormais constatar em simultâneo e de ocorrência tão constante.
E ele largou as chuteiras para calçar os sapatos de um paradoxo andante: é dono destes dotes, mas desdenha entrevistas e concedeu somente duas no Sporting, a uma televisão e após conquistar um troféu.
O Sporting ter sido campeão nacional com Rúben Amorim, matando um jejum com idade adulta, não é solitária justificação para a preponderância que o treinador tem no clube, de dentro para fora - nem isso é uma patologia do Sporting. Em clubes que mordiscam títulos e competem na Europa, as protocolares obrigações de conferências de imprensa e flash interviews colocam os técnicos na linha de tiro das perguntas que, hoje, já não constam apenas em jornais e televisões, cuja maioria do tráfego vem de telemóveis espertos repousados em palmas das mãos. Dependendo da personalidade do sujeito, por cada intervenção há excertos esquartejados para entrarem em redes sociais e soundbites destacados para serem partilhados massivamente.
Rúben Amorim debita muitos e um dos traços que o diferencia é o recheio das suas palavras, o conteúdo que o afasta da superficialidade, o mostrar que matuta sobre os temas em vez de os evadir com uma frase pré-fabricada. Mais do que ser um treinador que, dentro do Sporting, quer e gosta de participar em todas as peças da engrenagem, acompanha o trabalho de outros escalões e técnicos e faz por ser figura presente em decisões para lá das que concernem o trabalho de campo, virou, desde cedo, a voz do clube para quase tudo. Por ele ser como é e porque o Sporting não é imune às tendências do futebol.
Como a enorme maioria, os leões formaram um casulo que não é de agora. Com canais de televisão ou YouTube, sites próprios, redes sociais com milhões de seguidores, os clubes foram-se fechando com os anos na fome de controlar as mensagens e os treinadores, com o tempo, ficando como o porta-voz não oficial da equipa e da instituição. Perante pedidos de entrevista ou esclarecimento negados, quem se forma para trabalhar equipas e futebolistas teve de aprimorar o poder de oratória para lidar com a falta de alternativa dos jornalistas - cada vez mais, os treinadores são os únicos funcionários de um clube disponíveis para falar, responder ou opinar sobre o que for. E quando todas as outras vozes (presidentes e dirigentes) não se ouvem, restam as deles.
Descomplexado como é, dono de tamanho à-vontade, Rúben Amorim é um exemplo da fortuna que um clube de futebol pode granjear. Ter no treinador uma figura que lide tão bem com as costelas mediáticas da bola protege quem deveria responder por temas sobre os quais ele fala, dando guarida a quem é o real responsável por questões em que o técnico não é o último a decidir. E dando o flanco, como aconteceu: um dia, estava a congratular Matheus Nunes pela recusa em ir para a Premier League e a ilustrá-lo como um dos jovens que, por estes dias, já preferem ficar no Sporting; seis sóis vividos, o médio que tantos problemas resolvia no campo era comprado pelo Wolves e Rúben disse estar “insatisfeito”, colocando a “incoerência” noutra morada e constatando que “a direção fez as suas escolhas”.
Ainda reforçou que não lhe compete vender os jogadores, descrevendo-se como mero “empregado” do clube onde, porém, tem de ser ele a falar sobre decisões que ultrapassam as competências escritas no seu contrato. Por mais pó angariado ou leituras feitas, essa papelada não define a sua palavra como a derradeira a ser dada nestes afazeres. Do presidente Frederico Varandas, do diretor-desportivo Hugo Viana ou da instituição, via comunicado, nada se ouviu e, previsivelmente, pelo menos um dos dirigentes terá dado o aval à saída que o treinador acreditava não acontecer e até sugeriu que não sucederia, publicamente. Melhor do que ninguém, Rúben Amorim compreenderá que se pôs a jeito porque é assim que o futebol hoje existe: com o treinador a preencher a voz pública do clube, que se refugia na sua presença mediática para o bem e para o mal."

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