segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Dois canhotos e muitas latas de cerveja


"Minter entrou no ringue com uns calções com a bandeira do Reino Unido e o povo gritou: ‘There’s no black in Union Jack!’

Por carinho chamavam-lhe Boum Boum. O que não quer dizer que Alan Minter fosse um mamífero carinhoso. Pelo menos sobre um ringue. Tinha um punho esquerdo que parecia um martelo. Se o soco atingia o adversário numa das têmporas era KO certo e valia uma visita ao hospital mais próximo.
Além disso foi um dos responsáveis por uma das cenas mais deprimentes de toda a história do boxe. Teve lugar em setembro de 1980, na arena de Wembley, por entre um ambiente de tal forma fervente que acabaria por descambar numa batalha campal própria de animais enjaulados.
Minter, que exibia o cinturão, defrontava Marvin Hagler, o tipo que aguentou doze defesas consecutivas do seu título mundial de pesos-médios. Nascido em Newark, Nova Jérsia, concentrava uma considerável dose de vaidade a toda a altura dos seus 1m75.
Anunciava-se a si próprio como The Marvellous Marvin e fumegou pelas orelhas quando descobriu que a imprensa, não vendo nele nada de particularmente maravilhoso, decidiu em bloco continuar a tratá-lo simplesmente por Marvin. Então tomou uma atitude de rebeldia: foi ao registo civil e alterou o nome. Para Marvellous Marvin Hagler, como seria de esperar. Serviu-lhe de pouco. Precisava de assumir atitudes à Mohammad Ali e gritar para os microfones, batendo no peito como um gorila: «I’m Marvellous! You’ll see how Marvellows I ham!».
Alan Minter era o orgulho dos ingleses, ansiosos para ver o seu rapaz bater Marvin no combate pelo título mundial, ele que já fora campeão olímpico da categoria. Os finais dos anos 70 e início dos 80 atiram-nos para uma Grã Bretanha muito dividida em questões rácicas e, muito provavelmente, com o mais forte espírito racista da era moderna. Alan e Marvin tinham ambos um tom de pele normal, embora o de Marvellous fosse ligeiramente mais acastanhado. Muitos dos espetadores que estiveram nessa tarde em Wembley não consideravam que Marvin tivesse um tom de pele normal.
Há sempre bestas de 124 patas em cada aglomeração que ultrapasse meia-dúzia de fulanos. Alexander Reynolds, um jornalista especializado em boxe, resumiu a importância do confronto nestas frases: «He was bad. He was English. And as white as a loaf of Mother’s Pride bread. We were very lucky to have him». Ora pombas! Branco como um pãozinho da Mother’s Pride? Ainda por cima nem sequer um pão caseiro. Pão produzido por uma das maiores marcas de panificação de Inglaterra. A frase ficou como uma demonstração inequívoca de que de um lado estaria um branquelas e do outro um preto. O que inflamou o ambiente de forma insuportável.
Pelo menos havia algo em que tanto Boum Boum e Hagler eram absolutamente iguais: canhotos. Aquilo que na linguagem popular do boxe se chama de soutpaws. Pelo meio do encontro entre estes dois esquerdinos meteu-se a extrema-direita, ou melhor, a National Front, uma organização execrável cuja pseudo-filosofia assentava em duas expressões nojentas: «Paki bashing» (atacar paquistaneses) e «Nigger knocking» (derrubar negros). Um fedor intenso, um vómito infame infiltraram-se insidiosamente em Wembley. Já não se travava nem de Alan nem de Marvin. Tratava-se de puro e duro segregacionismo.
Um pouco por toda a Londres, sobretudo nos bairros do sul, os grafittis multiplicaram-se pelas paredes com mensagens nojentas contra Marvellous. Minter, que não devia propriamente muito à inteligência e muito menos ainda ao bom senso, soprou as chamas da fogueira e espalhou as chamas por toda a parte graças a uma frase miserável: «It has taken me 17 years to become champion of the world. I’m not going to let a black man take it away from me». Um rugido de pretensa superioridade branca ergueu-se do labirinto das ruas dos bairros pobres e das gargantas daqueles que exigiam o recambiamento dos trabalhadores que chegavam das ex-colónias e, segundo eles, lhes roubavam o emprego e o pão.
Marvellous Marvin Hagler guardou dentro de si a raiva que sentia. Minter surgiu no ringue com mais uma provocação: vestia uns calções com as cores da Union Jack, a bandeira do Reino Unido. Havia gente que gritava o velho slogan: «There’s no black in Union Jack!», recordando que só tem azul, vermelho e branco. Mas também havia muitos americanos por entre o público. O promotor do combate, Bob Arum, resumiu desta forma o ambiente: «A huge, drunken orgy».
Hagler não teve piedade: no primeiro soco, rasgou o sobrolho do adversário. Depois, demoliu-o por completo, lentamente, como se estivesse a tirar um prazer sádico do sofrimento de Minter. No momento da vitória, ajoelhou-se e ergueu os braços. Latas de cerveja começaram a voar em sua direcção, dez mil animais bêbados transformaram a arena num filme de terror. Harry Carpenter, o fleumático comentador da BBC limitava-se a murmurar ao microfone: «Shame and disgrace for English boxing...»."

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